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A mentira invencível

Dizem que a mentira tem pernas curtas, mas se esquecem de que foi a tartaruga que ganhou do coelho naquela corrida da velha fábula. A mentira tem vantagem sobre qualquer outro tipo de narrativa, pois possui um segredo. Qual?

Dizem que a mentira tem pernas curtas, mas se esquecem de que foi a tartaruga que ganhou do coelho na célebre disputa da corrida da velha fábula.

A mentira tem vantagem sobre qualquer outro tipo de narrativa, pois ela possui um segredo. Qual? O segredo de poder “pegar” quando contada como se fosse a revelação de um segredo. O segredo da mentira é passar-se por segredo.

Se contamos algo a alguém, mas que é alguma coisa racional, não miraculosa, não escandalosa, o fazemos por narrativas informativas ou formativas. Mas quando chamamos alguém num canto e lhe dizemos “vou lhe contar um segredo”, tudo muda. Estamos escolhendo alguém. Estamos dando confiança. Estamos fornecendo poder, ou ao menos enganando esse alguém com a ideia de que o escolhemos, que ele tem importância, e que por isso vai participar do poder que temos. A mentira com alguma pitada de escândalo, se passada de mão em mão assim, ganha sempre.

A mentira é muito poderosa quando nesse esquema, pois mesmo que aquele que a recebe fique sabendo que é mentira, não terá coragem de se desfazer dela, pois certamente já compactuou da ideia de poder repassar um segredo. Já está na trama de ter poder por conseguir distribuir poder – mesmo que inicialmente falso. Se conto um segredo, lhe dou poder, mas também aumento meu poder sobre você, que passa a me tomar como fonte privilegiada, uma vez que se sente importante por ser o escolhido. E o jogo de favores e de concessões de amizade e status envolvido nisso tudo é jogo de poder. A mentira contada como se fosse segredo, ou seja, aquilo que é o elemento chave e central da fofoca, é o meio pelo qual uma tal prática sempre tem sucesso.

Um dos mais importantes livros do marketing político de todos os tempos, a Bíblia, nos bem ensina sobre esse assunto. Conta o livro sagrado que Moisés falava com Deus, mas que jamais o Criador o atendeu de frente, no encontro face a face. Moisés conversava com Deus tendo este sempre de costas. A postura corporal aí é significativa. Quando queremos contar um segredo, o modo costumeiro é fazê-lo meio que de lado ou totalmente de costas (ou de cabeça baixa com um capuz), como quem não está conversando. Essa postura indica que se está lidando com um segredo que guarda o mistério necessário de maneira a fazer com que aquele que recebe o segredo entenda que é de fato o portador de um segredo, e, por isso mesmo, um escolhido. O texto bíblico deixa claro esse poder de Moisés, e ao mesmo tempo ensina a forma de fazer algo se propagar com facilidade. Algo digno da fofoca. E o conteúdo da fofoca, ser fosse verdade, não seria contado assim e, enfim, não seria fofoca.

Autoridades religiosas, líderes políticos e raposas empresariais sabem disso. São pessoas treinadas para participar de jogos fortes de poder. São especialistas em chamar alguém e, meio de lado, ou com a cabeça baixa, sugerir a este ouvinte que está lhe contando algo por conta de uma escolha, de uma consideração, de uma amizade, ou mesmo de um declarado modo de ceder poder. Se se trata de uma verdade, a força da racionalidade da mensagem lhe daria chances de se perpetuar. Mas se se trata de meia verdade ou mentira, o objetivo não é só que se espalhe, mas que antes de tudo envolva outros na sua teia. Teia de espalhar mentiras que é ao mesmo tempo teia de se envolver com o poder, e de se achar participante em algo importante – uma seita, um governo de crápulas, um partido clandestino, uma missão empresarial etc.

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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