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A outra inveja!

Nem sempre a inveja é aquela relacionada ao desejar algo que o outro tem e que não temos. Ela é também a sensação humilhante que sentimos quando alguém, por meio do seu sucesso, lembra-nos de tudo que está errado em nossas vidas.

Certo pensador francês iluminista uma vez disse que o único consenso possível é sobre a inexistência de consensos. Apesar desta afirmação ser um pouco exagerada, encerra uma verdade: a concordância é um fenômeno raro entre os homens. Deveras, os consensos tendem a ser tão raros que os únicos que podemos imaginar com facilidade são justamente os mais desinteressantes: por exemplo, “matar sem motivo é nocivo à sociedade” ou “corrupção empobrece o país” são os pontos comuns que, de tão comuns, tornaram-se clichês ou simplesmente não dignos de nota. Um desses casos, no mesmo patamar do homicídio e da corrupção, é a inveja. De fato, “inveja é ruim” é uma frase quase autoevidente. Quase.

A problemática de usar o senso comum para falar sobre inveja é que, comumente, a língua é muito genérica para tratar de sentimentos, deixando escapar algumas características contextuais. Calma, já explico. Imagine duas situações: após a morte de um parente, a reação mais comum é chorar histericamente e, depois de alguns meses, a tristeza se esvair e se retomar à sanidade; no entanto, uma outra resposta possível é… Não ter resposta alguma, mas sim ser tomado por uma sensação imensa de vazio e despropósito, a qual consome nossa felicidade rotineiramente. Os dois casos podem ser parecidos entre si, mas, claramente, não são a MESMA COISA: como exemplo, se um se projeta para o exterior e usa da histeria, o outro se restringe ao interior e usa da angústia. Infelizmente, a língua portuguesa não tem palavra para realizar essa diferenciação entre um sentimento ou outro, juntando-os em uma coisa só: tristeza. É precisamente isso que ocorre com “inveja”. Ela é multifacetada e a língua portuguesa só atinge uma face.

Inicialmente, o filme teria 23 personagens simbolizando as emoções. No entanto, aglutinaram em apenas cinco. É precisamente o que nossa língua faz.

Desta forma, cabe a diferenciação entre duas formas de inveja. Primeiramente, tem-se a “inveja destrutiva”. Nesta, tem-se alguém que possui algo, seja um bem material ou uma característica de caráter, que está ausente em nós e, ademais, que desejamos possuir. A fim de lidar com isso, diminui-se a conquista do outro – “Não é tão difícil’’ ou ‘’Ele trapaceou para chegar até aqui” – ou mesmo se tenta destruí-lo ativamente, usando de violência física ou psicológica. É sobre este tipo de inveja que referíamos no início e, mais do que isso, a que é exposta aos montes na mídia, desde novelas da Globo até versículos bíblicos – “O coração em paz dá vida ao corpo, mas a inveja apodrece os ossos” (Prov. 14:30). Este tipo de inveja, que apodrece e destrói, é, claramente, algo negativo.

Mas há outra forma: chama-se “Litost”. Este nome estranho é, de fato, uma palavra tcheca, sem tradução para o português. A sua descrição, todavia, é inconfundível para qualquer um: “a sensação humilhante que sentimos quando alguém, por meio do seu sucesso, lembra-nos de tudo que está errado em nossas vidas”. Ou seja, o princípio é o mesmo da inveja destrutiva: tomamos contato com algo que não possuímos. A resposta, contudo, é totalmente oposta: não visamos destruir o outro, mas sim chorar por nós mesmos. No lugar do ódio, a pena e a tristeza. Tem-se vergonha de ser si mesmo, por fim.

Quando se tem alguém sentindo “Litost”, já não há tanta certeza se tal pessoa deve ser censurada – como no caso da inveja destrutiva ela é, com certeza, uma invejosa e, no entanto, no lugar de a odiarmos, a tendência é que abracemos, afaguemos e, no conjunto, consolemos essa pobre alma. É porque dá pena, muito pena.

Lista do vestibular: um exemplo de Litost jovem e contemporânea.

E o maior problema nem é a tristeza inicial. A Litost nos destrói a longo prazo. No livro “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, há uma ilustração trágica disso: Thomas, no início do livro, é um médico renomado e honesto; no entanto, após se envolver com política, ele recebe um suborno para publicar uma mentira em um jornal. Finda-se por publicar e, para a surpresa de Thomas, todos no hospital acabam por gostar mais dele. Sabe por quê? Porque todos sentiam Litost, e uma forma de acabar com ela é fazer com que todos sejam medíocres como nós. Thomas ao ter sido desonesto retirou a Litost de todos eles. Ora, é fato óbvio que, a fim de se evoluir como pessoas, a figura do exemplo – alguém mais virtuoso que nós e que nos inspiramos – é essencial. Se um dos efeitos da Litost é de somente nos aproximarmos de pessoas iguais ou piores do que nós, é muito evidente que, a longo prazo, estaremos estagnados enquanto seres humanos.

Assim, se a “outra inveja” nos entristece momentaneamente e nos limita vitaliciamente, é do maior interesse arrumar uma resolução para ela. Na minha visão, há, como na própria inveja, duas faces para isto. Primeiramente, deve-se dizer que a Litost não é algo distanciado, surgindo, de fato, comumente no núcleo familiar ou em relacionamentos amorosos. Nestas situações, aquele que recebe a “inveja branca” também tem um dever, isto é, esforçar-se por mostrar uma visão autêntica de si mesmo. De fato, é tendência que só mostremos nossas virtudes e belezas, o que, inevitavelmente, gera a Litost. Se nos concentramos em mostrar, além do belo, as partes vulneráveis que nos compõe, humaniza-nos, podendo nos tornar ao mesmo tempo admiráveis e acessíveis. É nisso que se baseia, por exemplo, a cumplicidade de Jack e Rose, casal de Titanic: só há a verdadeira aproximação quando ela demonstra ao pobretão sua instabilidade emocional e tristeza.

Só ao demonstrar fragilidade podemos ser verdadeiramente admirados.

Além disso, aquele que é alvo da Litost tem sua tarefa de casa. Alain de Botton, filósofo austríaco, chama isso de “Diário da Inveja”. No caso, para cada vez que sentimos Litost por alguém, devemos anotar no diário as características do sentimento: local, razão, pessoa, etc. A ideia por trás disso é encontrar padrões em nossa inveja. Para Alain, tais padrões demonstram vontades ocultas que por ventura possamos ter: se, a todo tempo, invejamos aquele com boas notas, talvez haja em nós uma vontade reprimida por ter sucesso acadêmico. De posse dessas informações, o filósofo nos convida a refletir e a se motivar para o aperfeiçoamento pessoal. Isto é, não aceitar a Litost como uma sensação meramente improdutiva ou triste, mas sim como um alerta de nossa mente para nossas necessidades mais ocultas e profundas.

Em última análise, chega-se em um consenso ao mesmo tempo interessante e pouco óbvio: a inveja tem caráteres múltiplos e, para cada um deles, cabe uma ação. À destrutiva, à censura. À Litost, à compaixão e o aperfeiçoamento. Com base nessa diferenciação, podemos viver nossas existências, tanto de forma menos agressiva, quanto de forma mais plena e leve.

Seremos, que paradoxo, dignos de inveja. ^-^

Bruno Sales Author
Bruno Sales é Estudante esforçado, entusiasta intelectual e conversador. Estudante de Economia, escritor amador e apreciador de Filosofia e Matemática. Sonha publicar o livro que vem trabalhando faz anos; a médio prazo, adquirir independência financeira e reconhecimento intelectual; a longo prazo, mudar o mundo.
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