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Existe “consciência negra”, mas não existe “consciência humana”

Acelerar o processo de diminuição de preconceitos é acelerar uma bola de neve necessária.

Existe “consciência negra”, mas não existe “consciência humana”. Isso é uma verdade, se estamos na sociologia. E, no caso, estamos na sociologia.

Consciência humana é toda e qualquer consciência. Assim, “consciência humana” é uma expressão toda, unificada, em que o “humana” funciona não como adjetivo do substantivo consciência, mas apenas como uma peça reiterativa.

Na sociologia, não faz sentido falar em “consciência humana”, pois a ideia de consciência X ou Y está ligada à ideia de identidade social. Há, então, “consciência negra”, “consciência operária”, “consciência feminista” etc. Identidades sociais são formadas por tais “consciências”, ou seja, a capacidade de ter um pensamento próprio, um modo cultural e determinado de apreciar o mundo e de se reconhecer no mundo como um diferente a partir da inserção em um grupo. Faz sentido dizer “eu sou negro e não tinha uma consciência negra, agora tenho”. Não faz sentido dizer “eu sou humano e não tinha uma consciência humana, agora tenho”. Quem não entende isso vai insistir, erradamente, em querer destituir de importância as datas referentes à “consciência negra”. Fazendo isso, na certa estará contribuindo exatamente para o arrefecimento dos ganhos trazidos pela consciência negra.

“Consciência negra” enfatizada em um dia, uma semana ou um mês não é bobagem. É através de periodizações desse tipo, que atraem a mídia e outros elementos formativos e informativos, que uma “consciência” abre espaço para que elementos empíricos possam criar suas identidades sociais de minorias. Isso se faz necessário para que não tenhamos apenas uma massa de carne humana vivendo, mas homens e mulheres inseridas em culturas distintas, capazes então de nos dar nosso melhor, que é a criatividade gerada pela diferenciação de necessidades, gozos, aspirações e epistemologias.

A “consciência X” é sempre uma qualidade não empírica. Nenhum homem ou mulher a possui, ela é uma expressão significativa ou, para alguns filósofos, um conceito. Utilizamos do conceito para saber o quanto, na nossa vida cotidiana, no mundo empírico, agimos e pensamos segundo os dispositivos normativos do conceito ou não. “Faltou-me consciência de negro”, pode dizer um negro que não percebeu que deveria buscar a lei antirracismo para se proteger ou para denunciar uma injustiça. Ninguém diria “faltou-me consciência humana” ou “ele não tem consciência humana”. O que se diz é: “ah, faltou-lhe humanidade”, ou seja, ele não agiu como os humanos devem agir quando se diferenciam das bestas por X ou Y.

Época de “consciência negra” é época em que as pessoas podem dizer para o Demétrio Magnoli e outros empertigados que negro não é cor da pele, mas cultura, e ninguém é negro, as pessoas se declaram negras se se inserem na cultura negra. As cotas, portanto, são para os que se declaram negros, e avalia-se isso pela boa fé e pela razoabilidade de se reconhecer quem pertence e quem não pertence a uma dada cultura declarada. As cotas não precisam de tribunais. As cotas são para que minorias se integrem rapidamente no seio da maioria, ainda que preservando sua identidade. A política de cotas é solicitada exatamente por quem não é só negro, mas é negro com “consciência negra”, e pelo branco inteligente que entendeu que acelerar o processo de diminuição de preconceitos é acelerar uma bola de neve necessária.

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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