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O engraxate

Em tempos de valorização dos consumidores, quando tanto se apregoa que o cliente deve estar em primeiro lugar, um engraxate coloca-se de joelhos, diante daquele que lhe pede seus préstimos, com humildade e subserviência, altivez e competência, dedicação e comprometimento.

“Pela obra se conhece o autor.”
(Jean de La Fontaine)

Caminhando pelo saguão do aeroporto miro meus pés e descubro sapatos que parecem tristes e cansados de tão opacos e descuidados.

Dirijo-me até a engraxataria encontrando um ambiente pequeno e bem organizado. São quatro os profissionais ali posicionados diante de suas cadeiras revezando-se à espera dos clientes.

Assento-me e passo a observar um senhor bastante robusto, cabelos parcos e grisalhos, contando seguramente mais de cinquenta anos, a exercer seu ofício. Coloca-me calçadeiras para proteger as meias, toma nas mãos uma flanela, limpando cuidadosamente a superfície dos sapatos. Parece preparar-se para iniciar a confecção de uma grande obra de arte.

Meus pés repousam sobre a caixa, em verdade, seu cavalete. Tal qual um artista, ele admira os contornos da moldura definidos pelo solado. Em vez de óleo de linhaça, água. Em lugar de tinta, graxa. Um recipiente adaptado assume o papel de palheta. Um pincel e uma escova completam seu instrumental. A tela já pode ser pintada.

Enquanto ele desenha sobre meus calçados, um mundo de reflexões invade minha cabeça. Sempre tive em mente um estereótipo de engraxate. Um garoto ainda muito jovem, percorrendo as ruas em busca de alguns trocados para reforçar a renda familiar. Uma atividade transitória, não uma profissão.

Por isso, ao olhar para aquele senhor que me atende, bem como aos seus colegas que nos avizinham, pergunto-me por onde anda a justiça dos homens que não permite àquelas pessoas, com suas idades já avançadas, com tantas experiências acumuladas, rugas a lhes preencher a face, cansaço a lhes abater os olhos, usufruírem de um trabalho menos desgastante e melhor remunerado, bem como de mais tempo e oportunidades de lazer.

Não que aquela atividade seja indigna. Ao contrário, talvez seja trabalho dos mais edificantes. Em tempos de valorização dos consumidores, quando tanto se apregoa que o cliente deve estar em primeiro lugar, um engraxate coloca-se de joelhos, diante daquele que lhe pede seus préstimos, com humildade e subserviência, altivez e competência.

Pincel que pinta, escova que limpa, flanela que lustra. Após alguns minutos, traços rabiscados completam o grafismo imaginado. A obra está acabada. Meu anfitrião olha-me nos olhos e com um amplo sorriso diz:

– Agora está brilhando!

Sua expressão é de regozijo, de plena satisfação. A missão foi cumprida. Seu talento pôde se manifestar e ganhar as ruas para apreciação de todos.

Eu o cumprimento, apresento-lhe meus agradecimentos, pago a conta e sigo meu caminho, ainda mais pensativo diante de tamanho exemplo de dedicação e comprometimento. Agora com os pés brilhando. E a mente iluminada.

Tom Coelho Author
Tom Coelho, com formação em Publicidade pela ESPM e Economia pela USP, tem especialização em Marketing e em Qualidade de Vida no Trabalho, além de mestrado em Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. Foi executivo, empresário, secretário geral do IQB/ INMETRO, diretor do Simb/Abrinq e VP da AAPSA. Atualmente é professor em cursos de pós-graduação, conferencista, escritor com artigos publicados em 17 países, diretor da Lyrix Desenvolvimento Humano, da Editora Flor de Liz e do NJE/CIESP, além de Conselheiro do Consocial/FIESP. autor dos livros “Somos Maus Amantes – Reflexões sobre carreira, liderança e comportamento”, “Sete Vidas – Lições para construir seu equilíbrio pessoal e profissional” e coautor de outras cinco obras.
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