Comumente, quando se fala em virtudes modernas, pensa-se em uma grande agitação intelectual. Considere isto: o “homem vitruviano” moderno é empreendedor, inventivo, criativo e, junto com um grande conhecimento do status quo, tem um quê de rebeldia adolescente. É, em suma, um homem de ação e liderança, capaz de alterar, com elegância e facilidade, tanto a si mesmo, quanto o mundo onde vive.
Steve Jobs, ideal contemporâneo.
Como qualquer herói-modelo, ele inspira os indivíduos a seguir os seus passos. Disto, advém uma indústria de autoajuda focada em transformar pessoas comuns – com intelecto medíocre e reprodutoras de conteúdo, como eu e você – nesses gênios-criativos-rebeldes. De fato, olhe que artigos legais eu achei na Internet:
– Descubra o segredo do Steve Jobs para o empreendedorismo;
– Como ser um Mark Zuckerberg da vida.
Wow, legal! Realmente, é um objetivo muito nobre passar dicas de como aumentar nossa capacidade criativa e colocar nossas ideias para trabalhar para nós. Para uma parcela da população, de fato, pode ser aquilo que os fará ter uma estabilidade financeira e uma autoestima valiosa.
No entanto, todo herói-modelo, além da inspiração, pode gerar justamente o efeito contrário: a depressão. Você sabe do que falo: quando não conseguimos alcançar o ideal que o herói projeta em nós, ele logo se torna um símbolo do nosso fracasso, um espelho expositor do nosso potencial não realizado. Em uma bela-trágica? – Ilustração disso, no filme ganhador de oito Oscars “Amadeus”, tem-se um conflito de talentos entre dois compositores: um deles é o Antonio Salieri, compositor italiano muito conhecido na sua época e responsável por músicas como Adagio, a qual compôs para o arquiduque de Viene; o outro é o Mozart. Nas palavras de Salieri, sobre seu par: “Eu não consigo pensar em um tempo em que eu não sabia seu nome. Enquanto eu ainda me envolvia em brincadeiras de criança, ele tocava para reis, imperadores e até para o papa em Roma!” Ou seja, havia uma grandiosa admiração aqui envolvida. Não obstante, quando eles se conhecem, e Salieri, que treinou a vida toda, percebe o talento superior e inalcançável do jovem Mozart, tal admiração se torna frustração. “Por que Deus escolheria um ser tão indecente para ser seu emissário musical?!” Expõe o compositor italiano, posteriormente. Recalque e tristeza, em suma.
Esta é a nossa situação, na maioria do tempo. Independentemente do que os artigos de autoajuda dizem, não é todo mundo que vai se tornar um herói contemporâneo. Na verdade, é quase ninguém. A fim de se tornar um empreendedor criativo, é necessário mais do que o próprio esforço: dentre alguns, nomeia-se a necessidade de um ambiente amigável à criatividade, de um país propenso ao ímpeto empreendedor, e, claro, de sorte. O próprio Mark Zuckerberg, como demonstra o filme A Rede Social, teve que contar, além da própria inteligência, com todos esses fatores ambientais e, até certo ponto, aleatórios: tinha acesso a amigos com bom capital inicial, em um país conhecido pelo espírito empreendedor e, por fim, conseguiu se aproveitar da criatividade alheia sem ser preso por violação de direitos autorais. Ambiente, país e sorte. Assim sendo, independentemente do nosso nível de esforço, a verdade cruel é que a maioria de nós está fadada à mediocridade, como Salieri frente a Mozart.
E não acaba aqui. Alain de Botton, filósofo austríaco, aprofunda essa situação ao adicionar que, na sociedade atual, a cultura do sucesso e do herói contemporâneo é tão forte que falhar em se adequar nela é, comumente, uma catástrofe. Como evidência, Alain diz que os países onde a cultura meritocrática é mais forte – isto é, os países desenvolvidos – são aqueles com as maiores taxas de suicídio [clique aqui] ou seja, o herói contemporâneo trás, junto da prosperidade, a decadência.
Desta forma, eleva-se a necessidade de buscar um outro tipo de herói contemporâneo, mais acessível às pessoas comuns e que não crie tanto a perspectiva de fracasso quanto o anterior. Como seria esse tal herói? Bom, primeiramente, certamente, alguém consciente dos próprios fracassos e, não obstante, tranquilo com isso. Por exemplo: o Outro Herói, no passado, tentou abrir uma startup e, como ocorre com seis entre dez delas, falhou. Ao falar sobre, ele não se enraivece ou entristece em demasia, pois tem consciência que seu fracasso não é demérito apenas dele: como já exposto, a sorte e o ambiente podem ter influenciado. Essa consciência de que podemos ser extremamente virtuosos em algo e, ainda assim, falhar, é um preceito rejeitado pelo Herói contemporâneo comum, que tem sede de controle pelo próprio destino. Ao seguir o Outro Herói, por outro lado, podemos nos apaziguar frente às nossas falhas: elas não dizem tanto assim sobre nós.
Uma outra característica desejável no Outro Herói Contemporâneo é a ponderação entre o trabalho e o resto da vida. O Herói comum é, por excelência, uma pessoa workaholic e ambiciosa no emprego. De fato, qualquer lugar abaixo de CEOé indigno. Disto, tem-se uma pessoa que foca grande parte da energia na carreira e, assim, abnega-se de outros investimentos na vida, como família ou amigos. Uma vez mais, esse estilo de vida pode funcionar muito bem para alguns, mas para a grande maioria é nocivo: a carreira de quase todos nós não será brilhante. Com certeza disto, o nosso Outro Herói não conserva muitos desejos para o seu trabalho: ele está satisfeito com o emprego e o salário médio, preferindo, ao invés de se dedicar a subir na empresa, empregar sua energia nos bons relacionamentos, hobbies e porque não, relaxar. É alguém, em suma, que louva a vida quieta: como em Marcos 6:8-9, é o apóstolo que viaja apenas com as sandálias e uma túnica.
Você consegue notar como o Outro herói é mais próximo do que o Herói comum? Como está dentro de nossas perspectivas diárias e mundanas? Eu também. Para nós, que não somos gênios-rebeldes-inventivos, é uma forma de salvaguardar a felicidade, por meio da exposição de que é possível ser uma pessoa comum e, ao mesmo tempo, extremamente admirável pelas virtudes.
Quando eu citei o modelo contemporâneo, coloquei Steve Jobs como ideal. Foi um dever fácil, é quase intuitivo pensar em bilionários empreendedores e ter a Apple em mente. Agora, com o Outro, isso não é tão simples: sendo figuras públicas geralmente pessoas muito focadas no próprio trabalho e extremamente autocríticas. O Outro Herói, por excelência, é alguém afastado da fama e dos holofotes. Assim, cada um deve buscar no seu próprio ciclo social o seu Herói contemporâneo: talvez seja seu avô, que curte a aposentadoria; seu primo que optou por uma faculdade próxima para passar mais tempo com a família; ou mesmo o vendedor de mandioca que não se preocupa com o próprio status social. O relevante aqui é visualizar a felicidade no rosto de todos eles. É necessário, em última análise, imagina Salieri feliz.
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