Conheci uma garota coach esses dias. Apresentou-se como uma leitora minha. Procurou-me para saber o que eu achava sobre “meditação”. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, contou-me que estava “usando de meditação” com seus clientes. Como um preâmbulo do trabalho com eles, ela os colocava “em meditação”. Deveriam, segundo ela, ficar em silêncio, sentados em lugar confortável e em “postura saudável”, “respirando corretamente”, com o objetivo de “não pensar em nada”.
Tentei intervir no que eu acreditava que seria uma conversa, mas a moça continuou, ela perguntando e ela mesma respondendo. Sendo assim, me explicou que a “meditação” é uma técnica de “esvaziamento mental”, uma “higiene mental”, uma disposição para ficar sem pensar e, assim, conseguir se abrir “energeticamente” para o trabalho dela, a coach.
Quando ela ia entrar pela terceira exposição de perguntas postas para ela mesma responder, soltei o livro que tinha nas mãos, de modo que ele viesse ao chão e provocasse um bom barulho. Fui bem-sucedido. Ela parou de falar com o acontecimento e, então, eu peguei o livro rapidamente e consegui formular uma frase: “mas meditação não é não pensar em nada, meditação é justamente pensar”. Ela ia continuar, sem me dar atenção, mas eu a cortei: “já ouviu falar das meditações do Descartes?”. “Ele se propôs a meditar, ou seja, pensar”. Só então ela parou, me olhou, e sentiu que talvez, uma vez na vida, ela poderia aprender algo que não fosse posto por um treinamento ou posto por um livro – esse tipo de livro que todo autodidata (uma raça maldita e crescente no Brasil) adora.
De fato, uma das coisas que bem distingue o século XVII do século XVIII, no legado filosófico que nos deixaram, é exatamente a diferença entre meditação e devaneio. A meditação foi de Descartes, no XVII, o devaneio foi o buscado por Rousseau, no XVIII.
Meditar é pensar, é se embrenhar na direção do pensamento segundo um traçado disposto por quem pensa, pelo pensador. Pensar é do âmbito do intencional. O que se quer, no pensar, é a obtenção do exercício do pensamento. Não há como não pensar em nada. Todo pensamento tem um objeto para se exercer como pensamento. Podemos dirigir nosso pensamento, pensando um objeto. Podemos não dirigir, deixando o pensamento receber objetos, como se ele, pensamento, criasse por si só um andamento, sem a decisão disso que chamo de “eu”. Escapamos disso quando nos dispomos ao devaneio, que, em princípio, teria sucesso se por algumas estratégias pudéssemos seguir alguma cadência de estímulos exteriores, e ficar como que em um estado de semi-sonambulismo, apenas vivenciando o momento.
Descartes fez seu “eu” comandar o pensamento. Rousseau, por sua vez, foi para o meio de um lago calmo, deitou no barco e ficou por deixar seus sentidos serem comandados pelo som cadenciado do bater da água, e pelo balançar leve e contínuo do próprio barco. Descartes pensou e, com isso, chegou ao ponto em que se viu duvidando de sua existência, mas aí, como estava duvidando, não podia duvidar que estava duvidando, e então chegou à intuição intelectual de que existia enquanto algo que duvidava, ou seja, pensava. Já Rousseau, sentiu sua existência ao não pensar, ao se entregar à vivência dos sentidos em harmonia com a cadência do barco e do som leve das águas, e assim foi jogado para um autêntico devaneio inebriante. Sabia de sua existência, mas não por decisão de seu pensamento, mas pela indecisão do devaneio, fruto da cadência de movimentos exteriores suaves.
Do século XVII e para o XVIII, então, teríamos o “penso, logo sou” indo para algo como “não penso e nem posso dizer que não penso, e então sou”. No primeiro caso, trata-se da existência forjada pela consciência de si. No segundo caso, a questão é a existência sentida, e só sabida a posteriori, quando após o devaneio recordamos que sentimos só existir quando conseguimos ser apanhados pelo fluxo do autossentir, sem pensar. Da consciência a uma quase hipnose, atravessamos a existência garantida por dois procedimentos bem diferentes.
Quando terminei essa explicação, a moça me disse, como quem jamais poderia ter realmente ouvido o que falei: “mas qual desses procedimentos eu poderia transformar em um treinamento para mim, para o trabalho de coach?” Então, eu a convidei para um café. Nada mais havia para ser dito.
Paulo Ghiraldelli Jr.
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