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O fetichismo do dinheiro: todos só somos saudáveis se somos verdes

Entramos para o mundo no qual nossa subjetividade, se existe ainda, é tornada verde, como o dólar. Ou é verde, ou não tem cor alguma.

Em A felicidade paradoxal, Gilles Lipovetsky acerta a mão ao descrever as fases do consumo moderno em correspondência às fases da produção industrial. É difícil discordar dele quando nos diz que vivemos um consumo que não é mais “para o outro” e sim “para si”. As pesquisas realmente mostram, hoje, um consumidor menos preocupado em provocar inveja e reiterar status social, ou criar distinções classistas, que um consumidor voltado para a curtição de experiências individuais e prazeres um tanto solitários e, digamos, pessoais.

Assim, hoje em dia seria mais fácil endossar teses sobre o narcisismo social, tendo no horizonte Christopher Lasch, que falar do consumo conspícuo, bem recortado na sociologia de Max Veblen. Todavia, estaríamos nós proibidos de voltar a Marx, e perguntarmos se sua análise do capitalismo – em especial as teses sobre o fetichismo – não seriam úteis aqui? É difícil calar o marxismo nessas circunstâncias.

O consumidor do passado, da fase da produção fordista e, enfim, também da fase pós-fordista de mercadorização de sentimentos e disposições, nada era senão aquele que aprendeu a guiar-se pelo fetiche da mercadoria. De fato, a mercadoria passou a funcionar como o vivo, e nós, os humanos, ficamos como os mortos diante dela. Ela adquiriu a condição de sujeito, e nós nos pusemos como objetos. Voltar à vida, então, nos fez imitar o fetiche, ou seja, a mercadoria. Mercadorizamo-nos para voltarmos a sermos gente! Imitamos os objetos para nos sentirmos sujeitos. Até pouco tempo, toda a crítica social se via na obrigação de denunciar nosso óbvio comportamento estereotipado, maquinal, feito objeto, ou então de meros zumbis. Mais recentemente, no entanto, o horizonte do fetiche da mercadoria tem ficado mais distante. O fetiche do dinheiro o substituiu.

A partir de Nixon, que em 1971 retirou o dólar de sua condição de atrelamento ao padrão ouro, o dinheiro americano – ícone e mandatário do dinheiro no mundo – se viu liberto para exibir toda a sua autorreferencialidade. O dinheiro, desde então, não mais significa algo a não ser ele mesmo, um número de conta. Isso favoreceu enormemente o capitalismo financeiro, que passou a se utilizar de uma moeda completamente fiduciária, gerada agora, em tempos de Internet, apenas pelo fluxo magnético, o ideal para tempos em que o que vale não é ciclo D-M-D’, e sim o ciclo D-D’, o do dinheiro que gera dinheiro. Esse tipo de capitalismo, chamado de “era do capital improdutivo” ou de vigência do “capitalismo de cassino”, fez vingar uma fetichização ainda maior. Agora, se o valor não dá mais base para o fetiche da mercadoria, ele alimenta o fetiche do próprio dinheiro. O vivo a que temos que imitar não é mais a mercadoria, e sim o próprio dinheiro. A autorreferencialidade do dinheiro é o que nos mostra o que é ser “gente”. Somos alguém se exercemos a autorreferencialidade. Somos alguém se somos imitadores do dinheiro. Ainda de nós se nos comportamos sem a virtualidade do dinheiro!

Se o dinheiro anda depressa, também nós devemos fazer o mesmo. Se o dinheiro é onipresente por ser dinheiro magnético, também nós desejamos ter uma vida como ele, única e exclusivamente virtual. Que sejamos avatares! Se o dinheiro participa do cassino da bolsa, também nós nos sentimos vivos se o dia todo estamos em algum jogo no celular. Se o dinheiro se reproduz sem trabalhar, também nós achamos que podemos fazer o curso de empreendedorismo para acordarmos no sonho que, agora, nem é mais o de sermos empresários, mas o de sermos “pequenos investidores”! Ou “médios investidores”! Temos de curtir nosso creme e nosso novo vestido diante do espelho. Temos de curtir o que comemos no Facebook, postando para nós mesmos nosso prato preferido em uma falsa rede social de amigos que não temos. Nossa vida prenhe de narcisismo espelha a autorreferencialidade do dinheiro atual, também ele um umbigo do mundo.

A cada dia, não mais nos relacionamos com o outro. O outro seria fruto de um mundo de um reino passado, o do fetiche da mercadoria. Afinal, mercadorias ainda possuem materialidade física e algum diferencial de aspecto. Ora, o dinheiro, diferentemente, não se diferencia a não ser por zeros a mais. A abstração máxima, agora, torna-se realidade da vida. A ideologia – que indica um mundo regido pela abstração fora da mente, nas relações sociais – se materializa em condições que atinge todos. Entramos para o mundo no qual nossa subjetividade, se existe ainda, é tornada verde, como o dólar. Ou é verde, ou não tem cor alguma. Ser verde-vômito indica, agora, ser saudável.

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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