“Nós estamos condenados ao mimo”, disse Peter Sloterdijk em uma conversa com seu colega Thomas Macho. Não há possibilidade de sermos humanos sem sermos mimados, porque a antropogênese é um processo de mimo. Só nos tornamos o que somos porque em determinado momento pudemos ser mais agraciados que outros em termos de proteção da prole. Tornamo-nos ricos porque ganhamos chance de riqueza. E isso ocorreu quando proto-humanos, por conta de chance de acolhimento, começaram a passar para a espécie as características de alguns indivíduos que clamaram – e foram inusitadamente atendidos – por um maior cuidado das progenitoras que, então, se tornaram mães. Desenvolveu-se a neotenia, fruto exclusivo do mimo.
Desse fato antropológico inicial nunca mais escapamos. Dali para a frente, nos mantemos como os seres da Terra que dependem de maternidade, e cujo percurso se caracteriza cada vez mais pelo plus que é o mimo. A democracia nada é senão uma das formas históricas determinadas por essa nossa gênese atrelada ao mimo. Ela é o lugar em que aumentamos os anos da infância e juventude, por um lado, e é também o campo no qual não são vigentes apenas direitos, mas o direito de criar direitos. Nada mais mimado que isso.
Quando olhamos os humanos por meio dessa narrativa, deixamos de lado a ideia de que somos frutos da necessidade e da carência, para entendermos que somos os rebentos da abundância.
Então, toda vez que, no âmbito moderno, obedecemos o pensamento da esquerda e da direita que se pautam pela ideia de que podemos viver sem mimo, que nossa vida é apenas a vida nua, como teorizou Agamben, e não a vida ética, pecamos por negar nossa origem. Pecamos por seguir a Internacional Miserabilista, ou seja, a visão de que somos seres da necessidade e não do plus, que somos frutos da dureza e não do mimo. E então nos preocupamos com políticas populistas de “mínimos”. O neoliberalismo com o “estado mínimo”, a social democracia com a “satisfação das necessidades básicas”. Recusamos a conversa sobre a melhoria da democracia, que seria a melhor conversa, que é a de ampliar direitos no projeto de invenção de novos direitos.
O realismo é sem dúvida a posição mais nefasta e aquela na qual abandonamos nossa origem promissora. O realismo é fascista, é o culto da vida dura.
Quando alguém diz que não podemos pensar de barriga vazia, uma tal verdade pode estar cumprindo uma função ideológica – quase sempre está. Pode estar a serviço da Internacional Miserabilista. Pode simplesmente estar nos induzindo a acreditar que nosso destino é o destino animal, o de conseguir a barriga cheia para estar feliz. Mas nem mesmo os animais são totalmente assim. Hoje sabemos disso, uma vez que o cão se tornou da família. A indústria de mimo do cão – a indústria pet – nos prova isso.
A esquerda e a direita atuais trabalham com a ideia de uma antropologia que despreza a ideia da evolução enquanto uma ideia de implementação de políticas do mimo.
Tudo que é luxo é secundário. Esquece-se que o próprio capitalismo é gerado pelo luxo, como bem lembrou Sombart. Então, a democracia, que é lugar que todos falam e, por todos falarem, há uma profusão maior de mimo reivindicado, é o que é desprezado.
Esquerda e direita são economicistas. E dentro desse quadro o mimo é desconsiderado e, portanto, o que é propriamente humano some do horizonte. Tudo é feito com a ideia de que precisamos garantir a “sobrevivência básica”. Não se percebe que o homem não tem básico. Ele é o animal que vive pelo não básico porque, para ele, o básico é o mimo. O homem é homem no parque de diversões, no agrado, no exercício do orgulho, na fruição de sua imaginação. O homem gera o “mais” e vive do “mais” (o nome diz: “mais valia”). O populismo de direita e esquerda negam isso. O segundo quer que o homem more no Minha Casa Minha Vida (ou BNH) porque acredita que a rua também é moradia. O primeiro quer que o homem defenda a si mesmo, armado, porque acredita com isso estar ajudando-o a não perder sua “capacidade de empreendedor”. Em ambos os casos, não se precisa de democracia, de discussão ética, de pautas morais e, enfim, da conversa sobre a cidadania.
Mas o populismo está errado. A esquerda e a direita da Internacional Miserabilista, se olhasse o Brasil, veria que o economicismo é errado, e que a população quer outra coisa e decide voto por outras razões.
Em todo o processo eleitoral da redemocratização brasileira, de 1985 até agora, só uma vez importou para a população a discussão econômica. Foi na vitória de FHC sobre o PT, por ocasião do Plano Real. Em todas as outras eleições, a discussão econômica, a conversa da sobrevivência, não valeu nada para o eleitor, pois ele estava interessado em bater na corrupção, em melhorar a vida enquanto vida ética, em criar formas de voltar a se orgulhar de si e do país. Nunca o economicismo decidiu pleitos. Porque somos condenados ao mimo, somos seres da vida enquanto vida que só se entende vida com abundância e mimo. Agora, nesse momento, no Brasil de Bolsonaro, novamente é a questão da cidadania que conta – e a população diz bem isso quando, tendo votado no Bolsonaro, pede, com mais de 70% de aprovação, que as escolas discutam política (cidadania) e questões de gênero e sexo (Folha de S. Paulo, 07/01/2019). É o prazer que importa. É o extra-prazer que vale. O necessário do homem é o que é o mais necessário que o necessário.
Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo
http://ghiraldelli.pro.br/
Confira também: Subjetividade: narciso melancólico e narciso histérico
Participe da Conversa