Precisamos aprender a conversar sobre a morte
O assunto sempre foi tabu. Falar e conversar sobre a morte é desafiar as regras impostas pelos costumes sociais. Acontece que ela é, não só real, como natural. Como você se sente a respeito disso?
As mortes traumáticas trazidas pela pandemia da Covid19 deixaram muitas cicatrizes, não só nas famílias que perderam seus entes queridos, mas em todos nós e, principalmente, nos profissionais de saúde. Por outro lado, podem ter nos deixado, enfim, uma porta aberta para expor as grandes dificuldades que temos para lidar com a finitude: a morte é uma questão humana universal.
Tenho conversado muito com meus amigos, clientes, médicos e profissionais de saúde – que, por conta de um problema genético, são muitos – e a cada vez me surpreendo mais com as indagações profundas que surgem sobre o medo, a fuga, o repúdio, as incertezas, a vulnerabilidade, o sentimento de fracasso e a culpa. Como se tivéssemos escolha.
Oras, não temos! Simples assim.
Desde sempre a maior pergunta da humanidade é sobre a morte. Como é também o foco de todas as religiões, cada uma a seu modo – e não é aqui o espaço para discuti-las. Na verdade, quero falar de algo muito mais próximo e tangível: por que não conversamos sobre a morte?
“A morte é a curva na estrada. Morrer é só não ser visto.” (Fernando Pessoa)
Por várias vezes já estive muito próxima dela. Tudo que eu queria era conversar sobre a minha morte: não de modo genérico, mas falar de meus temores; sobre como me sentia a respeito; do medo; sobre os sonhos que ainda tinha; sobre o legado que estava deixando; as reflexões que fazia; a quase ansiedade que sentia com sua proximidade; sobre seu toque.
Em todas as tentativas, fui rejeitada. As pessoas à minha volta não só se recusavam, mas me julgavam desequilibrada por querer abordar o assunto – que era quase um fato, aliás.
Por algum motivo que ainda não entendo, tal fato ainda não se consumou. Mas sigo curiosa, lendo, refletindo, discutindo, escrevendo. E, de certo modo, por minha experiência da proximidade com a morte, acompanhando pessoas que estão em seus momentos finais.
Há alguns anos um amigo me ligou chorando, dizendo que sua mãe estava morrendo, que ele não queria que isso acontecesse de jeito nenhum, “pelo amor de Deus!”
Não fui capaz de consolá-lo com palavras vazias. Apenas perguntei se conhecia alguma maneira de evitar a morte. Porque, se soubesse, com certeza ficaria rico e famoso. Mas ficaria feliz? Disse-lhe para estar inteiro ao lado de sua mãe e ouvi-la no que ela precisasse ou quisesse falar.
Temida, e nunca discutida
Não se trata de filosofia. Nem de arte. Ou poesia. Ou ainda música, embora todas essas áreas tenham dedicado grande parte de sua produção à discussão sobre morrer. Trata-se de aceitação. Nos recusamos a ver que tudo na natureza é finito, o que coloca um véu que nos impede de ver nossa finitude.
Claro, temos medo do desconhecido. É normal. É natural. Mas não precisa ser mórbido. Precisa ser trabalhado, desenvolvido, transmutado, aceito. Quem não aceita que tudo morre, acaba sofrendo mais e passa a vida em busca de um salvador fora de si mesmo. Acontece que ele está dentro.
Conversamos sobre amor, dinheiro, desejos, sonhos, sexo, família, filhos. Sobre a vida, que é apenas um tempo entre o nascer e o morrer. Mas nunca sobre a morte. E isso, caro leitor, faz falta. Mais que isso, preferimos que nossos conhecidos morram em um hospital para que não tenhamos nenhum contato com esse momento.
E os hospitais, por sua vez, são lugares de cura, não de morte. Portanto, os profissionais estão preparados para a vida que continua, não para aquela que está acabando. De um lado, a solidão no momento da passagem, é cruel. De outro, a autocobrança de quem não conseguiu promover a cura, é dolorosa.
Que escolha nós temos?
Desmistificar o tabu. Falar, conversar sobre a morte. Aceitar que morrer faz parte da vida. Repetindo o senso comum: a única certeza que temos. Vamos transcender? Reencarnar? Encontrar o paraíso? Descer ao inferno? Enfrentar um julgamento? Viver no vazio? Na não consciência?
Não sabemos. Não temos respostas, mas crenças, e vivemos de acordo com elas. Como também podemos morrer de acordo com elas.
Há mais de 10 anos tive uma experiência educativa com o falecimento de minha mãe. Tendo sofrido AVCs consecutivos, ficou mais de 15 anos praticamente na cama, dependente.
No começo, a cada crise, corríamos para o hospital. Mas seu sofrimento por estar longe de casa era visível, então resolvemos trazer hospital e médicos até em casa, depois de uma boa briga com o convênio médico. Foi assim durante anos. Até que percebemos o sofrimento em seu olhar – ela queria ir, mas não queria nos deixar. Talvez sentisse medo, talvez saudade. Não sabíamos.
Um dia, sentei-me ao lado da cama segurando sua mão e falei por um longo tempo sobre sua vida, o quanto nos tinha feito felizes; lembrei suas realizações, alegrias e tristezas… Falei sobre a morte coisas que eu nem sabia sentir. Ao final disse-lhe que estava livre para ir porque esse era o destino que nos esperava a todos. Reafirmei nossa extrema gratidão por tudo que nos tinha dado.
No dia seguinte ela entrou em estado comatoso, e três dias depois morreu dormindo. Eu, que nunca havia encostado as mãos em um corpo sem vida, dei-lhe banho, coloquei sua melhor roupa, passei batom e penteei seus cabelos brancos enquanto reafirmava tudo que já lhe dissera antes. Sua expressão era suave.
Naquele momento tive a certeza de que poderia ter feito isso antes; que morrer não é algo tão terrível assim – principalmente se você está preparado.
O conhecimento pode curar o medo
Não se trata, em absoluto, de ficar obcecado pelo assunto (mesmo porque tem sido a obsessão de muitas pessoas desde o começo da pandemia), mas sim de tratá-lo como parte da vida, sem dar importância demais, nem de menos. Em nossa busca estamos sempre acreditando que precisamos fazer alguma coisa – quando o que precisamos é só tratar como algo natural.
Óbvio que não é fácil! São milhares de anos sentindo, pensando e fazendo o contrário. Faz parte da cultura. Mas também não é impossível se tivermos a coragem e a honestidade suficientes para entender que fazemos parte do ciclo da natureza.
“Tudo que você foi, é e fez culmina com a morte” – ler os livros da Dra. Elizabeth Kübler-Ross, que conduziu muitos estudos e seminários com pacientes terminais e médicos, foi o início da aquisição de conhecimentos importantes na formação de quem sou e de como penso, mantendo-me aqui, mesmo contra todas as previsões.
Foram anos estudando as visões da filosofia, das religiões, científicas, esotéricas, culturais e populares; ouvindo histórias de pessoas que acompanhava em um trabalho voluntário; observando o medo das pessoas que acompanhava nas doenças.
Apenas para descobrir que é impossível saber alguma coisa sobre a morte: é possível sim, escolher acreditar no que se quer. E conviver em paz.
Como disse Sócrates, o filósofo, de acordo com a narrativa de Platão, “morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou, então (…) trata-se de uma mudança, uma migração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte”.
A realidade é o aqui-agora
Viver requer compreensão e habilidade e é esse o nosso desafio: fazer com que cada momento valha a pena através da construção de um mundo a ser herdado por outros, já que não somos nossos próprios herdeiros.
Einstein disse que “a única fonte de conhecimento é a experiência”. Pois bem, como podemos fazer da vida uma experiência tão profundamente prazerosa que nos torne satisfeitos e corajosos no momento da partida?
Talvez isso só seja possível se nos curarmos do nosso medo e egoísmo; se nos voltarmos para dentro e para fora simultaneamente, buscando quem somos e devolvendo ao mundo tudo que recebemos. O aqui-agora não é só individual, mas também coletivo, na medida em que estamos todos interconectados e somos interdependentes. Talvez isso nos faça transcender a morte ao continuar no outro.
“Todo homem é questionado pela vida, e só pode responder a ela ao responder pela própria vida: e à vida ele só pode ser responsável sendo responsável”. (Kübler-Ross)
Talvez, e apenas talvez, a grande lição que podemos aprender com a aceitação da finitude seja a maneira como escolhemos viver nossas vidas: qual marca queremos deixar? Que diferença fazer? O que podemos construir? Que colheita será feita de nossas plantações? Como fazer o agora melhor para todos?
Olhar para o futuro não significa olhar apenas para o momento finito, mas para o infinito que compreende tudo e todos.
“Eu não estou longe. Apenas estou do outro lado do Caminho… Você que aí ficou, siga em frente! A vida continua, linda e bela como sempre foi”. (Santo Agostinho – A morte não é nada)
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Quer saber mais sobre as razões por que precisamos aprender a falar e conversar sobre a morte sem que seja um tabu? Então, entre em contato comigo. Terei o maior prazer em falar a respeito.
Isabel C Franchon
https://www.q3agencia.com.br
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