“Ainda Estou Aqui”: O Filme que Resgata a Luta de Eunice Paiva e a Resistência na Ditadura Militar
Ainda estou aqui é um belíssimo filme baseado no livro de mesmo título do escritor Marcelo Rubens Paiva. A obra retrata o terrível drama vivido por sua família durante a ditadura militar no Brasil. Seu pai, o engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva, eleito por São Paulo em 1962. No entanto, teve seu mandato cassado logo após o golpe militar de 1964, com a instalação do Primeiro Ato Institucional, em 9 de abril daquele ano.
Acredita-se que um dos principais motivos da cassação foi o fato de Rubens Paiva, além de pertencer ao mesmo partido do presidente Joao Goulart, destituído do cargo, foi também vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou denúncias contra o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) acusados de receberem recursos internacionais que tinham como objetivo desestabilizar o governo de Goulart.
Rubens Paiva foi então exilado na embaixada da Iugoslávia e depois deportado para a França e Inglaterra.
Voltou para SP em 1965, mas logo se mudou para RJ. É a partir desse momento que o filme retrata a vida da família na capital fluminense. O enredo segue até o dia 20 de janeiro, quando Rubens Paiva é conduzido ao DOI-CODI do I Exército do Rio de Janeiro. Sua prisão ocorre após agentes do Centro de Informações da Aeronáutica prenderem Cecilia de Barros Correia Viveiros de Castro e Marilene de Lima Corona, detidas por portarem cartas de militantes políticos exilados no Chile, endereçadas a Rubens Paiva.
No dia seguinte à sua prisão, a esposa de Rubens Paiva, Eunice, e sua filha Eliane, com apenas 15 anos, são também levadas ao DOI-CODI. Eliane foi libertada no dia 23 e Eunice ficou detida até o dia 2 de fevereiro. Para não dar mais spoiler, mas revelando os fatos verídicos da saga dessa família, o corpo de Rubens Paiva nunca foi, de fato, encontrado. Documentos e testemunhos comprovam que Rubens Paiva foi torturado e morto no DOI-CODI do I Exército do Rio de Janeiro.
Para além de tudo que já sabemos sobre a história de Rubens Paiva, o filme é também sobre a vida e a saga de Eunice Paiva e sua busca incansável pela descoberta do que de fato acontece com o pai de seus 5 filhos. Uma luta que se estendeu por décadas.
Em uma entrevista Marcelo Rubens Paiva diz:
“Quando eu escrevi o livro, a ideia foi mostrar o papel de minha mãe nessa reconstrução, não só da redemocratização, mas da família. Mostrar como foi uma mulher atuante, porque enquanto meu pai foi preso e morto, minha mãe lutou desde os anos de 1971 pela justiça em relação aos desaparecidos políticos, contra a violação dos direitos humanos, dava entrevistas, viajava, lutou pela demarcação das terras indígenas, foi consultora do Banco Mundial, foi da constituinte, lutou pelas Diretas Já, pelo reconhecimento dos mortos aparecidos.”
Para Marcelo:
“A literatura é o testemunho dos vencidos. E somos nós, os vencidos em 70, que estamos contando nossa versão dos fatos e a juventude está tentando descobrir a história do seu país.”
Juventude e cidadãos que têm a oportunidade de ver essa história interpretada por grandes atores do cinema brasileiro sob direção de Walter Salles, o mesmo diretor do premiadíssimo filme, Central do Brasil que tinha Fernanda Montenegro como protagonista.
“Ainda estou aqui” que tem Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva brilhou tanto ao interpretar essa figura tão importante na reconstrução do Estado de Direito brasileiro que levou o troféu de melhor atriz pela Golden Globe (Globo de ouro) ao lado de estrelas do cinema mundial como Tilda Swinton, Pamela Anderson, Angelina Jolie, Nicole Kidman e Kate Winslet.
Assisti ao filme no cinema numa oportunidade em que estava passando uns dias com minha família no Brasil. Fui sozinha àquela sessão e pude, sem constrangimento, me emocionar e chorar em vários momentos. Mas foi a última cena com Fernanda Montenegro que me tocou profundamente.
Montenegro interpreta Eunice Paiva já idosa e com Alzheimer, doença que acometeu 14 anos antes de sua morte no dia 13 de dezembro de 2018. Uma cena que me fez lembrar de um texto do padre Fábio de Melo sobre a inutilidade no qual ele diz:
“Porque só nos ama, só vai ficar até o fim, aquele que, depois da nossa utilidade, descobrir o nosso significado. Por isso eu sempre peço a Deus para poder envelhecer ao lado das pessoas que me amem. Aquelas pessoas que possam me proporcionar a tranquilidade de ser inútil, mas ao mesmo tempo, sem perder o valor.”
“Ainda estou aqui” é um filme para nunca esqueceremos dessa mulher, Eunice Paiva, e sua luta. “Ainda estou aqui” serve para nos lembrar que mesmo na sua inutilidade a presença de quem amamos é mais que necessária. É o que também nos conecta com o nosso eu porque um dia seremos nós os “inúteis”.
Eu que sempre acreditei que meu papel de mãe estaria cumprido o dia que eu não fosse mais necessária para os meus filhos, me vi sofrendo ao sentir a dor de uma mãe que se torna desnecessária, excluída de momentos importantes. Eunice foi dessas mulheres cuja presença se fez necessária na vida dos seus filhos e netos até o fim. Mesmo na sua “inutilidade”, causada por uma doença que lhe rouba a memória até de quem sejam aqueles que lhes são tão caros, Eunice está presente nos encontros da família, bem cuidado, olhada e, acima de tudo, amada para sempre.
No dia 08 de janeiro, que marca dois anos da tentativa de um golpe contra as instituições democráticas de direito, “Ainda estou aqui” é o grito de todos aqueles que durante os 21 anos de ditadura resistiram e sobreviveram assim como é o de todos nós que resistimos e seguimos lutando e acreditando na democracia e no Estado de Direito. “Ainda estou aqui” também serve para nos lembrar da frágil presença da democracia, que mesmo que imperfeita e imatura é absolutamente necessária.
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Cris Ferreira
https://soucrisferreira.com.br/
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