Considero a professora Scarlet Marton a maior autoridade em Nietzsche da América Latina. Foi com ela que aprendi a dar atenção para a “fisiologia” de Nietzsche, a “biologia” de Nietzsche. Utilizei desses conhecimentos para escrever livros e artigos sobre o corpo, em especial o meu O corpo de Ulisses (Escuta, 1995), um estudo sobre a concepção de corpo na filosofia de Adorno e Horkheimer.
A parte mais interessante da concepção de corpo de Nietzsche, e que Scarlet Marton utiliza para fustigar a leitura que Heidegger faz do filósofo do grande bigode, é aquela na qual o nosso corpo aparece como uma pluralidade, não uma unidade. Somos um “conjunto de seres vivos”, diz Nietzsche.
Heidegger afirma que Nietzsche se insere no âmbito de uma metafísica, em especial a “metafísica da subjetividade”. Segundo Heidegger, o que Nietzsche faz nada muda de substancial, e que ele apenas troca, no âmbito da subjetividade, a mente pelo corpo, mantendo o centro da ideia de sujeito como peça unificada, propícia para uma metafísica.
Scarlet Marton, por sua vez, entende o pensamento de Nietzsche não como metafísico, mas como uma cosmologia. Na busca de evitar a interpretação heideggeriana, diz que, na sua leitura, Nietzsche não aparece como quem mostra o corpo como um sujeito, um equivalente da mente. O corpo em Nietzsche é um elemento plural, um “conjunto de seres vivos” que não detém nem uma razão e nem uma vontade unificadas, unidirecionadas e postas a serviço de um projeto intencional. Não haveria aí, portanto, um sujeito propriamente dito, na figura do corpo.
Até aí, então, a filosofia de Nietzsche permanece como filosofia. Sua biologia do corpo ou suas considerações fisiológicas seriam como narrativas sem respaldo científico. Aliás, um respaldo científico desnecessário, claro. Mas, se lemos o artigo de Helio Schwartsman na Folha, “Os quatro Tombos” (11/11/2018), começamos a ter de pensar em tirar as aspas das palavras “biologia” e “fisiologia” de Nietzsche.
Baseado em Virovolution de Frank Ryan, Schwartsman fala das funções de vírus e bactérias em nossos comportamentos. A conclusão é estarrecedora, e colabora com os descentramentos já feitos por Copérnico, Darwin e Freud: “Alguns pesquisadores já sugerem que seria mais adequado pensarmos em nós mesmos como superorganismos do que como indivíduos isolados.
Acrescenta-se assim, aos 30 trilhões de células humanas, algo como 39 trilhões de bactérias.” Assim, o estudo vai muito além do que até então advogávamos quanto ao nosso pertencimento à “terra”, ou seja, a evidência de que a mitocôndria era um animal independente que foi absorvido. Trata-se de algo mais efetivo, mais direto, menos uma questão de fossilização, digamos assim. O que Ryan mostra realmente nos leva à ideia nietzschiana de corpo não como uma visão filosófica propícia ao combate contra a metafísica, mas a uma hipótese científica que, enfim, poderá mudar toda nossa biologia e até mesmo nossa medicina.
Daqui uns anos poderemos ver nas matérias escolares, na disciplina biologia, não só Darwin, mas Nietzsche.
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