Sabe a certeza que você tinha de que estava tudo sob controle? Chega então o COVID-19, um inimigo invisível, faz um estrago e coloca em xeque a saúde e o mercado no mundo todo.
A vida até ontem era frenética. Não tínhamos tempo para nada ou, pelo menos, era isso que todos diziam. Tantas prioridades. Ganhar dinheiro, pagar contas, consumir aquele produto de luxo ou não tão desejado, fazer graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, levar as crianças nas aulas de ballet, de judô, de inglês, de espanhol e, claro, nas aulas particulares para que não perdessem a média escolar. Média! Vivemos até ontem para sermos medíocres. Para fazermos aquilo que todo mundo faz porque, afinal, todo mundo faz. O efeito manada. Bora seguir o bando e não importa nem para onde estão indo. Se forem para o precipício, vou também.
E não é que chegamos na beira do precipício. Mas alguma coisa nos parou antes que despencássemos montanha abaixo. Ainda temos uma chance. Estamos vivos! Muitos não tiveram a mesma sorte e pagaram com a vida. Não conseguiram frear. Outros, ainda insistem em seguir e não acreditam no precipício porque não o veem. E há os que tentam, de todas as formas, lhes fazer enxergar o perigo. Que lhes impede de avançar e seguir porque sabem que a morte é eminente. Basta dar um único passo.
Nós seres humanos, nós brasileiros, que nunca vivemos uma guerra e não temos sequer ideia do que ela seja de fato. Guerra? Toda guerra é, de certa forma, anunciada. Há um inimigo declarado. E essa, não! Uma guerra cujo inimigo não deu o menor sinal de que iria atacar. Um inimigo invisível.
E nós, seres arrogantes, prepotentes, egoístas, tivemos forçosamente que entender o que os militares americanos chamaram de mundo VUCA, o mundo da guerra, que é o mundo das vulnerabilidades, das incertezas, do completo caos e da ambiguidade.
Sim! Sabe aquela certeza que você tinha de que estava tudo sob controle? Sabe aquela segurança porque você paga em dia seu plano de saúde, sua previdência, o seguro de vida? E aquele carro que você comprou zero e ainda tem as prestações para pagar porque não valia a pena comprar um mais simples ou usado à vista porque valeria a pena todo o sacrifício para pagar as próximas 24/36 mensalidades? E todas aquelas urgências? Reuniões que não poderiam jamais ser canceladas, aniversários dos filhos que você não pode ir, datas que você esqueceu, mas seu cônjuge ou namorado(a) dá tanta importância, mas para você tempo é dinheiro. Ou pelo menos, era.
Pois é, um inimigo invisível que chega sem avisar e faz um estrago. Coloca em xeque o sistema de saúde do mundo inteiro e o mercado também. Os efeitos colaterais podem levar pessoas e empresas ao óbito. O planeta terra, de repente, teve todos os seus muros jogados no chão, derrubados. Não há barreiras nem muros que não sejam transponíveis. Não há distinção de raças, de ideologias políticas, de preferência sexual, de classe social ou econômica, de escolaridade. E não adianta enviar seu currículo e muito menos querer subornar ou tentar pagar propina. Este inimigo não faz distinções e, se chegar perto dele, estará correndo sérios riscos de vida. É melhor manter distância. Distância social até das pessoas que você mais ama.
Neste mundo VUCA de completo CAOS e INCERTEZAS, descobrimos o quanto somos VULNERÁVEIS. Basta ter tido o mínimo contato com alguém infectado. Basta não ter lavado bem as mãos. Nos tornamos receptores e transmissores capazes de espalhar um vírus para dezenas, centenas de pessoas.
Quanta AMBIGUIDADE! Nossas crianças e jovens que tanto gostamos de abraçar e beijar ou que saem nas festas beijando algumas dezenas, se tornaram os agentes mais propensos de espalhar a doença, mas não apresentam sintomas. Estão protegidos, mas não imunes. Quanta AMBIGUIDADE!
Estes mesmos jovens que até ontem, no carnaval, não perdiam um bloquinho e se espremiam no meio da multidão, bebiam no bico da mesma garrafa de cerveja ou de vodca ou de catuaba, agora estão mais isolados do que nunca. Precisam ficar o mais longe possível de seus pais, avós e qualquer pessoa que tenha mais de 60 anos. Eles, com quem brigávamos para saírem do celular, agora pedimos que liguem para as pessoas que amam, que gravem vídeos e usem toda a tecnologia do mundo para dizer às pessoas que amam que eles não vão lhe abandonar.
E o tempo? O que aconteceu com o tempo? O nosso tempo cujo dono é o deus todo poderoso, Cronos. Um deus implacável, filho de Urano, o deus dos céus, e de Gaia, a deusa da terra, cuja imagem é sempre representada pela figura de homem forte, musculoso com uma foice na mão. A foice representa a arma que Cronos usou para matar seu pai, Urano, e lhe arrancar os testículos.
Sim! Este é o deus que governa o nosso tempo. Um tempo cronológico que contamos até os milésimos de segundo, que fazemos questão de medir, o tempo do indivíduo e do seu ego. Tempo que é indiferente ao ser humano, que corre e não está nem aí para quem quer que seja. Um tempo que tem preço, mas que não tem valor. Cronos é o tempo que nos governa com ansiedade, que nos faz entrar na piração de querer saber o tempo todo que tempo ainda temos, quanto tempo já passou e quanto tempo estamos desperdiçando. É, o tempo de Cronos estava nos enlouquecendo a todos. E precisou que Kairós desse um basta e enfrentasse Cronos.
Kairós que é o deus do tempo de Deus e da alma. O tempo de qualidade e não mais de quantidade. O tempo que estabelece uma profunda relação com o sujeito e não mais sai correndo desenfreado. Kairós veio para nos dar o tempo da contemplação. O tempo que pode e deve ser compartilhado. Kairós nos ensinou não mais a nos preocuparmos em contar o tempo. Aliás, o que menos queremos é contá-lo.
Não nos importa mais saber se é dia de semana ou do fim de semana porque Kairós nos ensinou que todo dia é útil. A pergunta que estamos nos fazendo agora, regidos por Kairós, é: qual é a qualidade do tempo que estou vivendo neste exato momento com meus filhos, minha família e aqueles que verdadeiramente amo? Qual é a qualidade do tempo que estou me dando e que estou podendo doar para aqueles que sequer conheço, mas sei que podem se tornarem seres humanos melhores se eu lhes levar uma palavra, uma mensagem de conforto e amor?
E com a força de Kairós, o deus Aión, se fortalece e vem nos fazer companhia. Aión, o deus das fontes e correntes de água. Não por acaso, Aión que está imune como a natureza e as crianças dos males deste vírus contemporâneo. Aión que representa o tempo das crianças. E criança não conta tempo. É o tempo imensurável. O tempo que é tão sagrado, tão eterno, que não se percebe. É o tempo no qual entramos em estado de “flow”, ficamos tão imergidos nas nossas brincadeiras, atividades, prazeres que não o sentimos passar.
Kairós está nos obrigando a ficar em casa como as crianças devem ficar. Está nos obrigando a relembrar as brincadeiras e jogos de infância, a procurarmos filmes que sejam leves e divertidos, nos permitindo cantar e dançar na sala no quarto e até no banheiro e na cozinha. Está nos ensinando o prazer de cuidar dos alimentos, de descobrir novas receitas e de nos sentarmos juntos à mesa.
Neste mundo VUCA de tantas vulnerabilidades, incertezas, caos e ambiguidade, me resta uma única certeza: a de que tudo isso vai passar e que vamos sair deste caos completamente transformados. Que Cronos perca a sua força e não use mais a foice para matar aquilo que Kairós e Aión fizeram nascer dentro de nós.
Saúde e paz para todos nós.
Cristiane Ferreira
https://soucrisferreira.com.br/
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