Na história bíblica, Jó era um homem exemplar: trabalhador, religioso, virtuoso, temente a Deus, pregador de Sua palavra, seja em público ou na solidão de sua mente. De muitas formas, Jó representava o melhor de nós. Mas… será mesmo? E se Jó fosse uma daquelas muitas pessoas que só é correta quando é próspera? Afinal, de fato, ele tinha certa riqueza, uma boa família e saúde. Se não tivesse nada disso, ainda seria bom? O Diabo achou que não. Em um acordo com Deus, apostou que, sem os benefícios da vida, Jó se voltaria contra o Todo-Poderoso. Como se sabe, o Diabo perdeu: Jó, mesmo estando na lástima, sem riqueza, família ou saúde, jamais se virou contra Deus.
Apesar da derrota, sendo perspicaz como ele é, a postura de Satanás nestas situações jamais mudou: ao longo dos séculos, tendo que decidir entre a bondade e a fraqueza de caráter do homem, ele sempre aposta no pior do ser humano. E sempre ganha, via de regra. Sabe por quê? Pois ninguém é Jó. Apesar de todos os sermões, as censuras e demonização à hipocrisia, a verdade é que, frente a adversidades, longe do público ou após alteração na rotina, ninguém se mantém sólido aos próprios valores, discursos e ações. Esse é o conhecimento de Satanás: na alma de todo ser humano, a hipocrisia reina.
Jó, o ser humano sem lacunas
Por qual motivo tal frase pode ser dita com tanta frieza e certeza? A fim de investigar isso, tente realizar, em voz baixa e reflexiva, estes dois exercícios mentais, aparentemente banais:
- Pense em doze características diferentes sobre você.
- Pense sobre dois motivos para você ter realizado as decisões mais importantes da sua vida (a profissão, o casamento, a solidão, a mudança de país, a permanência, etc.)
O primeiro exercício investiga o quanto sabemos sobre nós mesmos. Inicialmente, tudo flui naturalmente, sendo simples pensar em algumas: “Ansioso, preguiçoso, justo… É fácil.” Algum tempo depois, já na segunda metade, no entanto, começamos a falar mais devagar, pensar demoradamente e, por vezes, nos contradizer: “Nervoso, esforçado, ansioso… Eu já disse ansioso? Dá para ser preguiçoso e esforçado ao mesmo tempo?”.
O segundo, por sua vez, busca avaliar no que estão baseadas nossas decisões. Se pensarmos com clareza, algumas dúvidas embaraçosas vêm à mente: Por quais valores eu me guio? São meus ou influenciados por outros? Eu voltaria atrás em alguma decisão? O quanto eu pensei e penso sobre isso antes de tomar minhas decisões? Comumente, não temos respostas concisas para esses questionamentos.
Da dificuldade com essas perguntas, temos uma conclusão perturbadora: não sabemos quem somos e nem porque agimos como agimos. Nas palavras do filósofo francês Michel de Montaigne: “Não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão, nem mistura, nem o exprimir de uma só palavra”. Somos folhas em branco na ventania, sem conteúdo nem direção. Se é assim, não havendo solidez nenhuma em nós, é nada mais do que natural a contradição entre nossas palavras, ações e valores, isto é, a hipocrisia. Por tudo isto, o homem hipócrita não deve ser visto como alguém que se desviou, um transviado aberrante, mas, ao contrário, alguém que seguiu a tendência natural: não aquém da humanidade, mas sim plenamente inserido nela, um humano, demasiado humano.
Apesar disto, dizer que a hipocrisia é natural não é equivalente a afirmar sua bondade. De fato, como é comum pensar, o ser humano hipócrita traz desgraça, tanto para sua comunidade, quanto para si próprio. Em primeiro lugar, a hipocrisia destrói ideologias. Ora, todo ideal que quer ser difundido na sociedade precisa estar embasado em duas pilastras: a teoria e a ação. Aquela tem o propósito de apresentação e sedução do ouvinte: dá-se as razões para se crer em algo, colocam-se exemplos e se suscita reflexões. Já a ação tem a finalidade de interiorizar a ideologia: ela se incrusta em nossa mente por meio da surpresa, da estupefação e da evidência empírica. É a união da sedução com a estupefação que vem o crédito a uma ideia. A hipocrisia, no entanto, corrói o segundo pilar: retira da ideologia o elemento da ação, banalizando-a.
É sempre evidente a diferença estrondosa de força entre uma ideologia hipócrita e uma sólida. Para provar isto, tem-se um exemplo muito lúdico: no Brasil colonial, um dos maiores escritores foi, sem dúvida, o Padre Antônio Vieira, representante da prosa barroca. Em um dos seus sermões, o décimo quarto, o padre defende que a escravidão aproxima o negro de Jesus: “Não há trabalho, nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e à paixão de Cristo que o vosso em um destes engenhos”. Chega a dizer que, com paciência, os negros terão merecimento e martírio. Embora tudo isto tenha sido dito de forma muito bonita, é no mínimo estranho que um homem que jamais foi escravo, ou se propôs a ser, exaltar as virtudes do escravismo. Você se convenceria? Eu não. Tal exemplo deixa explícito que um mundo preenchido por hipocrisia é idêntico a um ausente de ideologias sólidas.
Padre Vieira, sentado e escrevendo sobre escravidão
Além desse triste efeito social, a hipocrisia corrói também o indivíduo. À saber, uma pessoa hipócrita, por definição, profere valores e palavras que ela não pratica. Em muitos contextos sociais, no entanto, a hipocrisia não é tão aparente: a maioria das pessoas que travamos relações não nos conhecem a fundo e, assim, não podem saber se somos superficiais com nossos valores ou se realmente praticamos. Em ilustração grossa, é difícil saber se nossa colega do curso de inglês com a camisa “Save the whales” realmente está preocupada com o meio ambiente ou só quer pagar de consciente. Esta segunda opção é plausível porque, ora, defender coisas boas traz para nós uma boa aparência! Todo mundo aprecia o vegetariano-preocupado-com-causas sociais, de modo que há um grande ganho em simular sê-lo.
Ao menos a curto prazo. O farsante, com o passar dos anos, acaba angariando para si uma série de elementos negativos. Primeiramente, ele vai notar um denegrimento de sua imagem: com o convívio mais frequente, mais e mais ficará evidente para outrem as contradições de seu caráter, o que levará as pessoas a se afastarem e, com razão, difamarem-no. Afinal, ninguém é tão astuto ao ponto de preencher todas as lacunas entre a palavra e a prática: a hipocrisia sempre transbordará [conforme visto no artigo “Os estereótipos e os adolescentes”). Além disso, o sujeito acostumado à superficialidade tende a se esquecer de como se aprofundar. Isto é, sendo apenas simulador de virtudes, e estas dependentes da prática, ele jamais as alcançará em totalidade. Isto é bem exposto pelo aforismo do pensador francês François de La Rochefoucauld: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”, ou seja, na incapacidade de alcançar a plenitude, a hipocrisia a reconstrói em partes. O homem dissimulado, portanto, está fadado à infelicidade.
Assim, sendo a hipocrisia tão nociva, é mister combatê-la. Mas, como ela também é uma parte integrante do gênero humano, não basta uma mudança pontual para extirpá-la, fazendo-se necessário uma alteração brusca na forma de conduzirmos nossa vida. A direção desta alteração é evidente, conforme os primeiros parágrafos deste texto: para não ser hipócrita, precisamos nos conhecer melhor e embasar mais nossas condutas. Se conseguirmos ambos, teremos uma coerência interna: saberemos nossas características e como elas se relacionam com nossos desejos, podendo, enfim, guiar nossas ações com base nisto. Em um ser humano pleno, não há lacunas para a hipocrisia se incrustar.
A fim de adquirir o autoconhecimento, realizar perguntas diárias sobre nós mesmos, manter um local em que registramos os eventos da semana ou mesmo o mero relembrar de memórias podem ser muito úteis. O filósofo austríaco Alain de Botton preparou um engenhoso “Self-Knowledge Quis”, acompanhado de comentários sobre cada pergunta: http://www.thebookoflife.org/self-knowledge-quiz/.
Já sobre o embasamento das condutas, faz-se interessante ter um conceito em mente: o respeito à semântica das palavras. Ora, cada palavra possui duas faces essenciais: a fonética e a semântica. Isto é, a palavra é constituída por seu som, o barulho gerado pelo movimento da língua no céu da boca, e o seu significado. Este segundo é a reflexão do mundo na palavra e, essencialmente, sua parte mais importante. Não é pelo som da palavra “amor” que ela ganha importância, mas pelo seu referente: o sentimento. Apesar da obviedade disto, é muito comum que, quando falamos ou escrevemos, prestemos atenção apenas na fonética de cada palavra, ignorando o significado. Em exemplo, você sabe o que significa dizer que se é “cristão”? É seguir Cristo, no exemplo moral e valorativo. Isto é, ter em mente a conduta e os dogmas pregados por ele. Se você não faz isso, não é cristão. E se não faz e, no entanto, proclama-se “cristão”, é hipócrita. E ponto final. Atentar-se ao que cada palavra quer dizer em cada contexto, e as implicações disto para nossa vida, é uma forma muito eficaz de diminuir a hipocrisia, portanto.
Com estas duas práticas, além da consciência das consequências negativas de ser hipócrita e necessidade constante de lutar contra essa parte horrenda de nossa natureza, é muito possível que consigamos nos aproximar da plenitude de Jó. E, com isso, além de ajudar a nós mesmos e à própria sociedade, faremos Satanás perder com mais e mais frequências suas apostas.
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