Hegel comemorou o feito de Descartes. Foi ele, Hegel, quem ensinou todos nós a marcarmos a modernidade, ao menos no campo filosófico, como tendo sido inaugurada pela ideia cartesiana de criação do eu absoluto. O Cogito ou o Eu que se pensa e, então, se ontologiza como “substância pensante” geraram o nosso tempo.
Todavia, também na mesma época, Pascal contestou Descartes: o eu seria apenas um conjunto de qualidades, não uma substância, muito menos, portanto, um absoluto. Depois, Hume também foi pelo mesmo caminho, delineando o eu como feixe de sensações e percepções. Essa tradição de crítica a Descartes chegou ao século XX pelas mãos de Nietzsche e virou moda com Benveniste. Foi ele quem deu ao eu condição exclusivamente linguística. O eu é como um “aqui” ou um “agora”; pronunciamos tais palavras que nos servem para indicar tempo e lugar em que estamos. O eu nos serve para podermos entrar na linguagem e ser um usuário da linguagem. Assim, usamos expressões que são referentes a nós mesmos: “Eu cheguei a São Paulo”. Dito por mim, significa uma pessoa chegando a São Paulo, exatamente aquela que pronunciou a frase, e não outra, ou seja, não você. Eu, Paulo, cheguei a São Paulo, e não o Pedro. Eu que uso a linguagem no momento sou quem chegou a São Paulo.
Mas, sendo substância ou mera peça linguística, ninguém nega a importância do eu na modernidade. Todos sabemos o quanto o eu predomina na vida moderna, uma época em que já se tornou normal falarmos de narcisismo: um culto do eu, um culto de si mesmo, uma disposição para projetar o eu sobre o horizonte e só enxergar aquilo que é o eu nosso, seja este eu real ou seja mera criação imaginária nossa, idealizada para mais (ou para menos – um narciso que admirasse sua feiura!).
No entanto, eis aí o problema de nossa época: somos narcisos em graus diversos e, ao mesmo tempo, temos sido bombardeados pela ideia de que estamos vivendo uma época de descentramento do eu, de vigência de múltiplos eus. Uma propaganda de TV que mostra bem essa situação vigente é a do comercial da Natura, agora de 2019 (veja aqui) “não me servem, mudo o tempo todo, como a minha pele”. Ou seja, sou aquilo que sou na internet: avatares e múltiplos eus. Sou na vida real isso, porque minha pele é, como disse Nietzsche certa vez em relação ao corpo, um conjunto de seres vivos. A propaganda leva ao pé da letra tal fisiologia, mas com base científica: a pele é de fato mutável e também um conjunto de micros organismos. Então, para que ela continue sendo plural e meu eu também, devo usar um tal creme da Natura. O texto termina assim: “vista sua pele e viva seu corpo”.
Nesse caso, o recado é narcísico, mas não na indicação de um eu centralizado e substancial. Um eu corporal, não mais o Cogito. Um eu deteriorável e, no entanto, cuidável pelo creme. Livros não mais servem, pois são para a mente. O corpo quer creme. E o corpo é plural. Ele dá a personalidade que, enfim, agora é cultivada por um narciso que se olha no espelho e se vê não mais unitário, mas em diversidade. Somos tantos rostos quanto microrganismos da pele que, como roupa, vestimos. Para viver temos de vestir a pele da multiplicidade. Ora, mas continuamos narcisos. Pois a propaganda mostra mulheres solitárias: ninguém curte o creme ou o visual delas, só elas mesmas. A propaganda é essencialmente contemporânea: lida só com desejos íntimos que são feitos para serem curtidos no espelho. É o fim da era da inveja para a entrada na era narcísica e intimista. Visto-me para mim! Tanto é que visto-me com minha própria pele. Minha experiência é com o creme, não com textos ou pessoas.
Esse narcisismo pode ser explicado por Peter Sloterdijk: falta-nos um parceiro que, enfim, abandonamos sem o devido cuidado ao nos desfazer da placenta. Pode ser notado por Agamben: se é o corpo o eu, então não temos ética. Não há ética para aquilo que é mera biologia e que pode ser trocada por um número e identificado por máquina. Podemos também lembrar de Byung Chul Han: é a falta do Outro que nos levou ao eu narcísico. Anselm Jappe, por sua vez, diz que este eu narcísico pode combinar bem com a ideia de pluralidade, de fragilidade, de diversidade. Aliás, ele acha mesmo que o narcisismo só combina com uma tal situação: a do capitalismo pós-fordista, pós-referência, ou seja, o neoliberalismo que é (des)regrador do capitalismo atual, aquele que o dinheiro não tem mais referência, não tem mais lastro, aquele em que as regras econômicas desapareceram. Nessa situação de volatização, nada melhor que um eu que imita o sistema de vida, um eu que narcisicamente não tem referência unitária, mas se multiplica em avatares não fixados em um espelho movente. Creio que poderia chamar de isso, por minha conta mesmo, de narcisismo dinâmico.
No mundo da não-regra, onde o valor, sendo abstrato, cria uma sociedade tautológica, tendemos a não ver mais nada de diferente, somente o Mesmo. Então, também o horizonte não apresenta nada de novo, somente nós mesmos. Melhor ainda se o horizonte apresenta vários eus que sou eu mesmo. Forja a impressão de diferente, sendo que se trata da mesma coisa mas com o que se apresenta plural (“rótulos não servem” – ensina a Natura). É como a moeda: cada uma com o seu uniforme nacional, mas são somente algo que não passa do igual, ou seja, dinheiro: o equivalente universal que tudo iguala. Moeda muda de nome e cada mulher que usa Natura pode mudar de pele – a própria pele é plural. Quando o dinheiro se olha no espelho ele se vê, na aparência, na forma de tipos de moeda, mas em essência, se enxerga como dólar, ou então não se vê; quando a mulher olha no espelho ela se vê múltipla se embalsamada em creme Natura, e aí sim, é mulher, ou simplesmente não se vê.
Paulo Ghiraldelli Jr, 62, filósofo
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