O Monopólio dos Piores Casos de Racismo
Em março, nessa coluna, publiquei um artigo intitulado “E a cultura continua engolindo a estratégia” em que comentava os casos apontados de trabalho escravo na Serra Gaúcha.
Em novembro de 2020, publiquei um artigo comentando os acontecimentos que envolveram a morte de João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre.
Na semana passada, a empresa voltou a ser notícia: um casal negro foi agredido por seguranças em um mercado que pertence ao grupo, o Big Bom Preço, em Salvador, após terem sido acusados de furto de dois pacotes de leite em pó.
O primeiro caso do tipo a ganhar o noticiário, envolvendo o Carrefour, foi em 2009. Depois tivemos outros, em 2015 e em 2017. No ano seguinte, em 2018, foram dois casos. Em 2020, mais dois, mesmo em um ano de pandemia, inclusive com o mais grave de todos, que talvez tenha motivado uma pausa que se estendeu até agora, 2023. Esse ano ainda não chegou à metade, mas já apresenta três ocorrências.
Esse é um pequeno inventário de alguns dos piores casos envolvendo a relação de uma empresa com a sociedade. Na lista acima, temos do envenenamento de um cachorro à denúncias repetidas de tortura, sendo que uma delas envolveria até estupro. São muitos episódios de humilhação, até mesmo descaso com o cadáver de um terceirizado e, o pior de todos, o assassinato ocorrido em 2020. Todos esses casos, de fato, tiveram associação direta com o racismo.
Ainda que tenham acontecido em diferentes unidades (e até em outras marcas do grupo), chegou-se a um ponto em que fica impossível acreditar em coincidência.
Há algo muito errado acontecendo com a cultura organizacional do Carrefour, que está permitindo que o racismo aconteça em suas lojas e cobre seu preço em vidas. Também é preciso citar que está engolindo repetidas iniciativas estratégicas em mudar essa imagem.
Qual a dificuldade em ajustar os Valores às Práticas, Políticas e Ações? Por que é tão difícil manter a coerência entre a Estratégia e a Cultura?
Há de se pensar que essa organização vive dois mundos, distintos, separados e desconectados. Curiosamente, na mesma semana em que aconteceu o caso em Salvador, a matriz apresentou seu novo escritório em Alphaville, com seu CEO Stéphane Maquaire falando sobre o novo espaço:
“Um ambiente inclusivo e ideal para que as equipes trabalhem sob o conceito de ‘time de times’, onde a cooperação entre áreas e setores é a chave para alcançar os resultados da empresa”.
Inclusão? Cooperação? Ambiente ideal? Conceito de Time? E o outro mundo, o mundo das lojas onde as práticas são evidenciadas como não inclusivas, desrespeitosas, nada colaborativas e totalmente desumanizadas.
Ao longo dos anos, a empresa vem se posicionando de muitas formas: emitindo pedidos de desculpas, colocando em dúvida o relato de vítimas, transferindo a culpa para terceirizados ou arcando com altas somas em indenizações (por exemplo, 115 milhões à família do João Alberto Silveira Freitas). Da parte da sociedade, houve ameaças de boicote e queda (momentânea) nas ações, mas nada parece fazer diferença e os casos continuam a se repetir.
Ainda que a empresa aparentemente não tenha perdas econômicas significativas, mesmo com as indenizações pagas e a imagem arranhada, do ponto de vista de respostas à sociedade, parece que a empresa tem se mexido. Ao entrarmos na área institucional do site do Carrefour, vemos as imagens de várias ações, todas voltadas para a luta contra o racismo. Há iniciativas na formação de profissionais da área de segurança (algo que parece urgente), em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares. Outras iniciativas passam por bolsas de estudo, incentivo de startups de fundadores negros, além de algumas também na área de sustentabilidade.
Parece tudo incrível por lá, alguém poderia ficar com a impressão de que se trata da empresa mais comprometida com a implementação da Inclusão & Diversidade.
Mas a realidade sempre acaba se interpondo e dando uma rasteira nessa imagem, já que os casos de violência associados ao racismo continuam a acontecer. E esses dois mundos envolvendo a empresa, tão diferentes, continuam presentes.
A complexidade e o caos em que vivemos não é algo simples para coexistir e navegar. Mas ainda assim, as empresas têm a responsabilidade de criar uma cultura que garanta ambientes de trabalho seguros e inclusivos. Onde a diversidade é valorizada e a discriminação não é tolerada. Em linha com estratégias e iniciativas para além de discursos ou ações de contrapartida para reparar os danos cometidos.
Como já escrevi em um artigo anterior, Cultura é algo que a empresa É e não algo que ela TEM. Práticas, valores e ações de inclusão, assim como cooperação e um ambiente seguro e humanizado precisam SER parte da cultura, SER a organização. Quando isso acontece, a chance de acontecerem casos como os citados aqui diminui absurdamente. Para que isso aconteça, é preciso que a estratégia desenhada e as ações implementadas na matriz sejam o modelo de gestão e liderança. Só assim, elas se tornarão uma realidade na ponta, nas lojas, onde a real diferença para a sociedade vai ser sentida.
Torço muito por uma mudança dessa magnitude, onde as ações adotadas pela empresa tenham resultados concretos. E que outros casos não venham a acontecer e artigos como esse precisem ser escritos. De novo.
Gostou do artigo? Quer saber mais sobre o Monopólio dos Piores Casos de Racismo? Então, entre em contato comigo. Terei o maior prazer em responder.
Até o próximo artigo!
Marco Ornellas
https://www.ornellas.com.br/
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