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O que é sexo, o que é gênero? De Beauvoir a Butler

A linguagem não deixa outra opção, de algum modo sempre generificamos o corpo, o sexo do corpo, pois também “masculino” e “feminino” não são palavras mais básicas, digamos, que “homem” e “mulher”.

Não foram poucas as teorias envolvidas em “discussão de gênero” que tomaram a frase de Simone de Beauvoir – “não se nasce mulher, torna-se” – como dizendo que gênero é construção social, e que o sexo, como dado pelo corpo, é o elemento natural sobre o qual o próprio gênero se faz. Segundo essa via de entendimento, “homem” e “mulher”, o binarismo de gênero, tem as variações de figuras, e isso nós conhecemos bem. Afinal, ser “homem” e ser “mulher”, todos sabemos, é algo variadíssimo na história e na geografia. No entanto, na base “material”, haveria o “feminino” e o “masculino”, ou seja, o corpo-com-o-sexo-que-é-vagina e o corpo-com-o-sexo-que-é-pênis. Essas expressões hifenadas não fariam referência a construções sociais, mas teriam status ontológico básico.

Os conservadores odeiam Simone de Beauvoir. Eles não suportam a ideia de que gênero é socialmente construído. Eles acham que não pode ser assim. Eles acham que se for assim, por efeito de educação intencional, o que se está fazendo é contrário à “determinação biológica” que diz que menino é masculino, possui pipi e deve usar azul, e que menina é feminino, possui vagina e deve usar rosa. Sair disso é “pecado”, “perversão”, “desnaturalização” e, no limite, segundo Pondés e Carvalhos, “marxismo que quer destruir a família”. Mas esses são os conservadores estilo Damares, ou seja, os representantes do que há de mais tosco na face da Terra. Há outros conservadores que estão dispostos flexibilizar as coisas.

Estes, os conservadores que se acham menos toscos, aceitam que, quanto a gêneros, cabe falar de “estilos”. Então, admitem que pode haver homens de vários tipos e mulheres de vários tipos, aceitam inclusive que existam, portanto, até outros gêneros (variações do mesmo tema: o homem afeminado, a mulher masculinizada, ou o homem que gosta de homem e a mulher que gosta de mulher etc.). Todavia, para que tais pessoas também fiquem incomodadas, a discussão de gênero passou de Simone de Beauvoir para Judith Butler (não sossegamos!).

A filósofa americana, em artigo publicado em 1986, de título Sex and Gender in Simone de Beauvoir’s Second Sex , não se opôs à filósofa francesa, mas buscou mostrar que a afirmação famosa da filósofa existencialista dava margem para ir além, e dizer que também o sexo é socialmente construído. De fato, não há muito sentido em fazermos referência a um corpo, se é um corpo humano, sem tratá-lo como uma situação, digamos assim. O corpo humano é sempre tratado linguisticamente e portanto, também é socialmente construído, ou seja, já trazido para a linguagem de gênero, “homem” ou “mulher”, de modo que dizer “masculino” ou “feminino” não é uma referência só à existência de vagina e pênis, mas sim uma referência a como entendemos “vagina” e “pênis”. Não olhamos para “vagina” e “pênis”, nos corpos, como não sendo de homens e mulheres, ou seja, com a conotação que isso implica na cultura: que a fenda da mulher faz um serviço e indica uma posição ontológica e o bastão do homem faz outro serviço e indica uma posição ontológica distinta. Em outras palavras, o corpo que mostra o sexo não mostra um sexo que já não é generificado (se esta palavra não existe, eu a crio agora!). Falar “sexo masculino” e “sexo feminino” não é falar em fenda e bastão, mas, sim, falar em homem e mulher, e tudo que isso implica no mundo humano, segundo história e geografia. Tanto é verdade que, de uns anos para cá, a generificação do sexo utilizou uma marca exterior, uma vestimenta: azul para bastão e rosa para fenda.

Essa segunda parte da teoria de gênero, quando o próprio sexo é construção social, é o que os conservadores, mesmos os que não se consideram toscos (mas são), não aceitam. Na verdade, falta aos conservadores uma verdade em filosofia da linguagem em sua associação às ontologias contemporâneas: não se pode falar de nenhuma matéria como matéria, mas sim como um corpo, e este não é o corpo da biometria de cadáveres, mas o corpo que só é acessado pela linguagem, só existe por ela, e por isso mesmo vem já com todo o peso do mundo. No caso, o peso do gênero que se funde com o sexo. Quando falamos em sexo masculino não pensamos num bastão que irá bater em bola como taco de beisebol (ou qualquer outro uso de bastão), mas num bastão que irá penetrar a fenda, de modo que esta é não uma simples gruta, mas um nicho para o bastão, um espaço a ser preenchido pelo bastão de modo a tornar tudo ajustado, justo, de justiça! A linguagem não deixa outra opção, de algum modo sempre generificamos o corpo, o sexo do corpo, pois também “masculino” e “feminino” não são palavras mais básicas, digamos, que “homem” e “mulher”.

Desse modo, se generificamos corpos, e se gêneros podem escapar do binarismo, então também os corpos se sexualizam segundo a ampla liberdade da generificação, que não necessariamente precisa ser binária. Essa conclusão deixa os conservadores de cabelo em pé. Pois eles imaginam que as palavras “feminino” e “masculino” tenham o dom de apontar para a “coisa em si kantiana” e, mesmo sendo “para nós”, traga o milagre de nos dar acesso ao “em si”. Corpo não é algo, sendo humano, que não tenha algum sexo – inevitavelmente generificado. Os limites “homem” e “mulher” desaparecem, e podem desaparecer também da prática linguística como a conhecemos hoje. Nessa hora, os conservadores tremem, ficam com raiva. Alguns, inclusive, porque percebem que irão morrer antes disso ocorrer de vez, e não experimentarão o paraíso.

Paulo Ghiraldelli Jr., 61, filósofo.

Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo, professor e escritor. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Tirou sua livre-docência pela UNESP, tornando-se professor titular. Fez pós-doutorado no setor de medicina social da UERJ, como tema “Corpo – Filosofia e Educação”. É bacharel em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (S. Paulo) e é licenciado em Educação Física pela Escola Superior de Ed. Física de S. Carlos, hoje incorporada pela Universidade Federal de S. Carlos (UFSCar). Foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. É editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior. Possui mais de 40 livros em filosofia e educação. Trabalhou junto da produtora de TV e filósofa Francielle Maria Chies no programa Hora da Coruja da FLIX TV. É professor de filosofia aposentado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Trabalha atualmente como diretor e pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA).
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