Experimente dizer para as pessoas mais velhas que seu melhor amigo é virtual. Ou seja: alguém que você, por intermédio de uma tela, uma conexão com internet e alguns quilômetros de fibra-óptica de alta velocidade “conhece”. Sabe da pessoa apenas seu estilo de escrita, os emoticons preferidos, o estilo de risada (KKKKKK ou AHUSAUHS?) e, com bondade, uma foto e um vislumbre da voz. É quase um ato de fé.
Da perspectiva da geração anterior, tudo isso parece muito estranho e inacreditável. Com certeza, você receberá olhares céticos e temerosos sobre a profundidade da relação. Como pode algo baseado em tão pouco ser considerado “amizade”? É impossível nascer algo tão majestoso de um terreno tão infértil. Não há o rir no pátio ensolarado da escola, o usar a boca para contar segredos profundos, o tocar a campainha e gritar o nome do amigo, o abraço consolador, a tristeza pela visita não concedida… Não há nada! A amizade, no passado, era sólida feita montanha inexpugnável e, agora, é abstrata como nevoeiro de final de tarde, dirão.
Colaborando com essa sabedoria popular, o sociólogo Zygumunt Bauman, grande pensador contemporâneo, afirma que a Internet “mina os laços humanos”, pois facilita imensamente a desconstrução dos mesmos, baseando o contato em algo demasiadamente fraco. De fato, desfazer uma amizade virtual é facílimo: basta a exclusão, com dois cliques, das redes sociais. Veja a amizade real, por outro lado: para terminar uma amizade sem constrangimentos, precisamos evitar frequentar os mesmos lugares que a pessoa, fazer remanejamento nos nossos ciclos em comuns e, muitas vezes, ser mal-educados e frios. É um processo árduo e desgastante, de forma que as amizades tendem a permanecer por muito mais tempo. Para muitos, isso prova a futilidade da mesma. Oras, como poderia algo valioso se esvair tão facilmente?
Seriam as amizades virtuais um elo fraco nas relações humanas?
Então, tem-se tanto o bom senso, quanto a reflexão filosófica apontando para a mesma direção. Parece forçoso sepultar a importância dos relacionamentos virtuais. Mas eu não consigo aceitar isso. Eu tenho uma história pessoal demasiadamente forte com tais virtuais para esses argumentos me convencerem.
No início da minha adolescência, tive sobrepeso, muitas espinhas e uma crise de identidade fortíssima, as quais colaboraram para eu ser muito zoado por meus colegas de sala e, assim, para o meu isolamento social. Eu me achava feio e fracassado. Foi uma época pesada para mim, chegando ao início da depressão. Se bem me recordo, ela se amenizou quando comecei a frequentar a Internet. Nela, pude, no finado Orkut, encontrar pessoas com gostos semelhantes aos meus, permitindo novas amizades. Como a minha aparência importava menos do que a minha forma de expressar, eu me sentia muito mais livre para travar relações com meus amigos virtuais. E, assim, com o apoio deles – alguns que conservo até hoje, quase 10 anos depois, aumentei imensamente minha autoestima, afastando o fantasma da depressão.
Percebe? Eu tenho uma dívida com a Internet e não posso simplesmente abandoná-la. Felizmente, não estou sozinho nessa empreitada contra a filosofia e o bom senso. Caio Fernando Abreu, escritor brasileiro do século XX, escreveu uma maravilhosa crônica com o nome de “Amizade telefônica”, em que narra os pormenores de ter uma amizade baseada no telefone. Claro, escrevendo nos anos noventa, seria impossível para Caio falar sobre a Internet, mas não é o telefone, em que só há a voz e mais nada, também uma forma de interação virtual? Com certeza. E os insights do escritor sobre o assunto são mais que valiosos.
Caio nos diz que se comunicar virtualmente demanda um grande esforço de nossa parte. Muito maior do que qualquer comunicação real. Afinal, não temos como apontar com o dedo, mostrar ou tocar o que gostaríamos de expressar. Pode-se apenas falar, no caso do telefone, e teclar, no caso do computador. O alfabeto é tudo. Com meios tão escassos, deve-se tentar entender e ser entendido pelo outro, ser influenciado e influenciar, amar e ser amado. E conseguimos. A cada conversa virtual bem-sucedida, podemos nos gabar de sermos escritores prodigiosos, capazes de passar sentimentos e intenções complexas com vinte e seis letras. Todo amigo virtual que tenho é um Shakespeare ou uma Virgínia Woolf. Nenhuma obra na literatura mundial é tão grandiosa quanto as velhas conversas do MSN.
E, de forma notável, essa produção maravilhosa é feita de total espontaneidade. Retornando Bauman, é extremamente fácil acabar com uma amizade virtual. Não há constrangimentos, afinal. E, no entanto, muitas amizades permanecem por anos. A única explicação plausível é que ambas as pessoas envolvidas REALMENTE gostam umas das outras. Isso mesmo! Enquanto, na amizade real, somos presos um ao outro pelos laços do ambiente ou pela pressão nos outros, na virtual existe apenas nossa vontade e sentimento. Livremente, escolhemos nos prender ao outro que amamos, portanto.
Foram essas amizades virtuais, sinceras e produtivas, ao invés de inúteis e nocivas, que me salvaram da depressão e fizeram mais por mim do que todas as reais combinadas. É tempo para a filosofia e o senso comum reverem seus conceitos: não foi só no pátio ensolarado da escola que dei risada. Foi também na solidão da madrugada, de frente para um computador de CPU antiga e enrolado em fios mil. Não usei apenas minha boca para expressar meus sentimentos. Usei também meus dedos para beijar as teclas empoeiradas do teclado, contando, com abreviações e gifs, os meus mais profundos segredos e, com os olhos vidrados no monitor grosso, lendo os dos meus companheiros. Não me restringi à campainha para anunciar minha chegada e nem a um abraço para expressar meu amor, mas com um “Bruno está online” e um “ lt;3 lt;3 lt;3”. Além de me entristecer por uma visita não concedida, também o fiz por uma mensagem ignorada. Havia de tudo! Foram esses pequenos atos de fé diários que me transbordaram e transbordam continuamente de felicidade e satisfação. A distância e a abstração virtual me demonstraram o real amor fraterno.
E tenho certeza que uma legião de jovens passou e passa precisamente pelas mesmas situações. Sabe por quê? ^-^ Porque os sentimentos humanos são um elemento atemporal de nossa natureza. Assim, são extensos demais para serem limitados a apenas uma via de expressão. Eles se adaptam ao progredir das eras e da tecnologia, expressando-se por meio de abraços, cartas, telefonemas ou mensagens no chat e, no entanto, conservando sua beleza, sinceridade e profundidade.
Não deixemos que o medo do novo e do abstrato enterrem essa tão nobre verdade. Que todos nos permitamos ter uma boa e profunda amizade virtual lt;3
Bruno está off-line.
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