
Seja Feminina e Carinhosa: Quebra de Ciclo ou Nova Opressão?
Um vídeo viralizou nas redes sociais e me chamou muita atenção. Apesar da maioria dos comentários ter sido de aprovação e o vídeo ovacionado por muita gente, me posicionei porque me senti incomodada.
A cena do vídeo era a seguinte: uma mulher branca na faixa dos 80 anos diz no ouvido de uma outra mulher branca na faixa dos 60 anos a seguinte frase, “você tem que ser forte, tudo depende de você, eu irei e você seguira carregando tudo contigo, assim foi e assim será.”
Em seguida, a mulher de 60 anos, fala com uma outra mulher na faixa dos 40 repetindo literalmente a mesma frase que ouviu. A mulher nos seus 40 anos, diz para a filha na faixa dos 10 anos: “não será mais assim, você não deve mais nada a ninguém, somente seja feliz, feminina e carinhosa”.
O vídeo, claramente, tem o objetivo de passar a mensagem sobre quebrar ciclos. Um conceito bastante explorado pelos adeptos da constelação familiar.
No artigo “ Constelação familiar promete resolver conflitos geracionais: como funciona?”, publicado no site emsidesenvolvimento.com.br , a constelação familiar é “uma técnica subjetiva, e por essa razão muitos especialistas consideram equivocado chamá-la de terapia.
Foi criada pelo psicólogo, teólogo, filósofo e pesquisador alemão Bert Hellinger (1925-2019) que leva em consideração conceitos energéticos e fenomenológicos.
De acordo com os estudos de Bert Hellinger, os descendentes acabam repetindo o destino — ainda que inconscientemente — de outros. Essa repetição de destino é uma forma de aliança que o sistema faz para trazer os membros que foram excluídos ou não reconhecidos para o lugar que pertencia a eles.
No processo, representantes e facilitadores podem pronunciar frases específicas de cura sistêmica, algo como “devolvo o que é seu e tomo o que é meu”, “teve que ser como foi”, “eu te aceito”, “eu vejo você e permito que você me veja”, “se eu ou meus ancestrais causamos algum mal, por favor nos perdoe”, “eu perdoo você”, “está tudo bem”.
Para os especialistas na técnica, essas frases repercutem de forma interna e ajudam a ressignificar dores, mágoas e conflitos. A emoção vai sendo diluída e substituída por apaziguamento. “Agora estou em paz” é uma frase que pode selar o fim, sendo que cada um usa o livre arbítrio para decidir qual o comportamento adequado a partir de então.”
Os traumas geracionais são também tratados por psicólogos e terapeutas que entendem a importância de questionarmos hábitos que nos causam dores e conflitos. Para além dos consultórios de psicologias ou de consteladores familiar, em uma sociedade patriarcal, judaico-cristã, que impõe padrões de comportamento, valores e crenças qualquer tipo de pensamento ou movimento que questione o status quo e proponha rupturas vai encontrar muita resistência, principalmente na ala mais conservadora da sociedade, mesmo que ela perceba que há violência.
Nesse contexto, as chamadas “minorias” vêm há séculos (pelo menos) lutando contra o racismo, a misoginia, a xenofobia, LGBTQIAPNfobia… Sabemos que a violência é perpetuada porque passa de geração para geração e o vídeo a que me refiro parece ter tido a intenção de mostrar como libertar uma geração da misoginia e da crença de que a mulher tem que ser forte, que assim é, não há o que fazer uma vez que todas as outras gerações irão carregar essas crenças. Lembra da frase que as duas mulheres repetiram? “você tem que ser forte, tudo depende de você, eu irei e você seguirá carregando tudo contigo, assim foi e assim será.”?
E qual foi a mudança quando a terceira mulher muda a frase e diz para a criança: “não será mais assim, você não deve mais nada a ninguém, somente seja feliz, feminina e carinhosa”?
Ora, será que essa mulher está quebrando um ciclo de violência e rompendo o de submissão da mulher ou está só fazendo uma nova maquiagem naquilo que claramente é uma opressão à liberdade da mulher?
Dizer que uma mulher precisa ser “feminina” e “carinhosa” não é a mesma coisa que dizer que ela deve seguir os padrões patriarcais e cristãos que a sociedade impõe às mulheres?
Para além disso, o que é ser “feminina”? Se você fizer uma breve pesquisa no google sobre ser feminina, irá se deparar com conceitos que são basicamente o seguinte: “são características do feminino: a bondade, empatia, sensibilidade, carinho, doçura, compaixão, tolerância, nutrição, deferência, carência…”
Quando se trata de padrões físicos e de beleza, espera-se que a mulher feminina seja jovem, magra, de cintura fina, seios fartos, boca carnuda, cílios volumosos…
E quanto ao comportamento? Ah, a mulher feminina deve ser sempre comportada, recatada, cruzar as pernas, não usar decotes, roupas curtas ou transparentes, não falar alto, não confrontar um homem, não se mostrar mais inteligente…
E a quem serve tudo isso? Aos homens, é claro. Se a mulher deve ser feminina e ser feminina é uma construção estereotipada da mulher imposta para privilegiar e não “ameaçar” um grupo, então não estamos libertando nem essa nem as próximas gerações enquanto perpetuarmos esses padrões mesmo que de maneira disfarçada em forma de libertação como nesse vídeo.
Uma coisa importante de entendermos, a meu ver, é o valor das tradições, da cultura e da história de nossos antepassados e da preservação daquilo que nos é caro enquanto indivíduos ou sociedade. Outra coisa, é repetirmos comportamentos, crenças, costumes que eram aceitos (ou toleradas) no passado e hoje não são mais. Comportamentos, principalmente, opressores e violentos que devem ser rechaçados e seus ciclos verdadeiramente quebrados.
Embora a minha crítica ao vídeo em um post tenha tido quase 200 likes, algumas mulheres discordaram (o que é super legitimo) com comentários do tipo: “a mulher pode ser o que ela quiser”; “qual o problema de ser feminina?”, “é sobre energia feminina”, “sou do lar e não vejo problema nisso” etc.
Esses comentários também me levam a fazer outras perguntas para que eu possa entender como quebrar verdadeiramente esse ciclo de violência e opressão. A primeira pergunta que faço é:
Quantas mulheres são o que querem ser e quantas são o que dão conta de ser numa sociedade que impõe padrões de comportamento, de beleza, de trabalho sem lhe oferecer as redes e aparelhos de apoio que ela precisa?
Quantas mulheres estão exaustas e fartas por tentarem caber nos padrões impostos sem se questionarem se é o que querem e se é bom para elas?
Se devemos respeitar e valorizar uma mulher dona de casa (e verdadeiramente acredito que temos a obrigação de respeita-la e valoriza-la), não deveríamos fazer o mesmo com todas as outras mulheres que escolheram ser CEOs, motoristas de caminhão, astronautas, andarilhas, prostitutas ou seja lá o que for?
E o que é energia feminina? Quem inventou isso? Essa é uma “energia” imposta pelo patriarcado. Nos fizeram acreditar que certas características (ou energia, se preferir) são “femininas” e outras “masculinas”.
Isso é algo que foi criado há pouco mais de 2 mil anos. Se estudarmos a história da humanidade desde a era paleolítica, veremos que havia sociedades matriarcais nas quais as mulheres tinham papel central e não havia distinção entre sexos.
Há estudos que mostram, inclusive, que as mulheres eram caçadoras, ao contrário do que nos fizeram acreditar de que a mulher ficava na caverna cuidando da prole.
Se vivêssemos numa sociedade na qual as diferenças entre os sexos não existissem, estaríamos valorizando aquilo que são virtudes humanas e não femininas ou masculinas. Estaríamos vivendo numa sociedade onde a mulher não estaria tão sobrecarregada por desempenhar vários papéis (de mãe, esposa, filha, profissional, dona de casa), com jornadas duplas/ triplas de trabalho porque os afazeres e responsabilidade com a casa e com os filhos não são igualmente compartilhados com o homem.
Não por acaso, movimentos religiosos e conservadores atacam movimentos feministas e qualquer um que questione aquilo que ameace a supremacia masculina. Ao dizer para uma menina que ela precisa ser “feminina e carinhosa” é impor-lhe padrões patriarcais e é veladamente dizer que uma mulher não pode ser “masculina”.
Quais seriam as “características” ou energia (se preferir) “masculinas” que não são permitidas às meninas? Meninas não podem ser corajosas, ousadas, destemidas, impulsivas, racionais, fortes, ambiciosas, valentes, etc? A nuance deste vídeo está exatamente em reforçar para uma geração inteira o que ela deve ser e, consequentemente, o que ela não deve ser. Isso não é quebrar o ciclo de violência e submissão da mulher.
Para quebrar esse ciclo, a primeira coisa da qual deveríamos nos livrar são desses padrões impostos que transformam a mulher num objeto a fazendo acreditar que certos comportamentos são aceitos e outros não porque o que está por trás dessa, que parece ser uma ingênua afirmação, “seja feminina e carinhosa” é a perpetuação de uma cultura machista/cristã que favorece e privilegia apenas o homem que, por sua vez, precisa manter essas crenças, valores e comportamentos para se manter na condição que está, de ser cuidado pelas mulheres que lhes são fieis, uteis e subservientes sem que sejam ameaças para seus projetos meramente pessoais.
E, para não parecer que essa violência é só contra as meninas e mulheres, precisamos compreender que essa cultura de valores patriarcais e cristãos não faz bem nem aos homens que tentam a todo custo sustentar aparências e comportamentos classificados como masculinos para não serem julgado, criticados ou que tenham sua “masculinidade” questionada.
Acreditar que certas características e comportamentos são exclusivamente “femininos” e, portanto, só servem para as mulheres, é igualmente cruel com os meninos, tanto quanto é cruel reforçar que certas características e comportamentos são exclusivamente “masculinos” e não servem para as mulheres.
Se há um genuíno desejo de quebrarmos ciclos de violência de gênero, me parece que a única maneira é dizermos para as meninas e mulheres que elas podem ser o que quiserem ser desde que seja qual uma escolha sua, baseada unicamente na sua vontade e não, na imposição de quem quer que seja.
E não basta dizer, precisamos de fato respeitar essas escolhas, eliminar a cultura misógina de nossa sociedade a começar pela educação de nossos filhos e filhas.
Que a mulher jamais seja explorada, descredibilizada, ridicularizada, desrespeitada, oprimida ou até morta por ser aquilo que escolheu ser.
Gostou do artigo?
Quer entender o que realmente está por trás da frase “seja feminina e carinhosa” e por que ela pode não ser tão inocente quanto parece, perpetuando padrões patriarcais? Então, entre em contato comigo. Terei o maior prazer em falar a respeito.
Cris Ferreira
https://soucrisferreira.com.br/
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