Tenho certeza que você já deve ter ouvido esta pergunta por esses dias. O ENEM foi neste fim de semana, afinal! É um evento importante. Como em todo ano, cria-se um ambiente único nos dias de realização das prova. Almoços são servidos mais cedo, cuidados especiais são tomados para garantir uma boa noite de sono e preces são feitas com mais ardor do que em dias anteriores. Inerente a essas excepcionalidades, talvez justamente porque elas principiam um evento único, há a persistente ansiedade. Serve ela como dínamo de nossa paranoia: independente do nível de estudo, tem-se a sensação de estar mal preparado (”E se cair justamente aquilo que não sei?”); não importando o quanto se cheque os bens necessários, teme-se esquecer algo (um documento, talvez!); e, acima de tudo, flerta-se com a possibilidade do iminente fracasso. Sim, o fracasso! O quão horrível é considerar que, após meses de dedicação e sacrifícios, o resultado esperado não será alcançado! Pior ainda, qual deve ser a sensação de ver os outros, alguns nem tão esforçado quanto nós, chegando ao sucesso?
Que horror, não? Pode ir aceitando. Guiando-se pelas frias estatísticas, você tem mais chance de estar abaixo da média na redação do que tirar mais de 700 pontos. Ciências humanas? Não espere que seja sua melhor nota. O mesmo ocorre com Matemática: daquelas dez chutadas, apenas duas estarão certas. E, tristemente, não há muito para se fazer a respeito: sendo a vida como ela é, muitas das condições necessárias para se ir bem na prova não estavam no seu poder. Talvez sua cabeça tenha sido bombardeada por dores no momento anterior à prova, talvez você seja atacado por crises de ansiedade frente a testes acadêmicos formais, talvez seu conhecimento seja apagado justo nos momentos mais importantes… Enfim, nesta miríade de talvez, eleva-se a certeza que, mais comumente nós e nossas habilidades somos sujeitos pacientes nas orações cotidianas. Assim sendo, provavelmente você foi mal na prova.
Nossas escolas, a mídia e, por vezes, nossos pais, são pródigos em colocar em nossa mente que tal fracasso em testes de admissão é equivalente ao juízo final de nossas vidas. Elevando o ENEM a patamares apoteóticos, entende-se que o avaliado ali é tudo aquilo necessário para uma boa vida. Mais do que isso, sem acertar 140, não se pode exigir ser amado, buscar diversão ou investir tempo em outros projetos. Para muitos desses agentes que nos cercam, o sucesso na prova é pré-condição para a felicidade humana.
Mas, de fato, não é por aí. Foi mal? Está tudo bem. Tipo, mesmo. Pense a respeito do seguinte relato: no passado, principalmente na França da Belle Époque, era muito comum haver uma competição entre os nobres para ver quem dava festas com mais convidados ilustres. Como Marcel Proust nos diz em um dos volumes de ”Em Busca do Tempo Perdido”, um visconde valia por 100 comuns e 10 barões. O vencedor angariava prestígio social e conseguia alguns favores dessas tais celebridades. No entanto, claro, vencer a competição dos bailes não fazia nenhum deles mais inteligente, emocionalmente estável, gentil ou amável. Naquilo vital para a felicidade, as virtudes relevantes para o espírito humano, em nada colaborava ser o vencedor. Sei que concorda e compreende a futilidade disto. Peço que, agora, transporte este mesmo pensamento para o ENEM.
Como em todo nosso sistema educacional, o tipo de capacidade mental avaliada pelo ENEM é a inteligência lógico-matemática (aquela relacionada com a capacidade de deduzir, avaliar e induzir). Além da lógico-matemática, há outros nove tipos de inteligência (como a espacial, a corporal-cinestésica, a intrapessoal, dentre outras), que simplesmente não são abordadas pela Prova. Ademais, além da inteligência, há incontáveis virtudes mentais importantes (como a honestidade intelectual, a curiosidade e tolerância), solenemente ignoradas pelo ENEM.Viu só? É baile aristocrático: demandando pouco sobre pouco, não nos diz muito sobre os aspectos mais importantes da vida humana. A inteligência, de fato, é relevante para determinados empregos e empreendimentos, no entanto, não é incomum que alguém a possua e, ainda assim, tenha uma vida emocionalmente quebrada ou mesmo seja uma pessoa com pouquíssima empatia e bom senso. Se duvida, saiba que Isaac Newton – sim, ele – foi um homem rude, orgulhoso e por vezes depressivo. Não se encontra a felicidade em equações sobre estilingues, analisando gráficos de logaritmos ou identificando funções orgânicas, pois bem.
Portanto, não use o ENEM como régua para seu sucesso enquanto ser humano. Aproveite-o como um ótimo instrumento de reflexão social que é e como indicador de um tipo de inteligência entre várias. E apenas como isso. Tanto sendo excepcional quanto medíocre, mantenha a compostura e o bom senso. Mais rápido do que se espera, tanto sucesso, quanto fracasso ficarão para trás.
Então, na próxima conversa com um amigo adolescente, não pergunte primeiramente como ele foi na prova. Questione primeiro como vai a vida dele como um tudo. Afinal, as dimensões de nossas humanidades são infinitamente maiores que dois maços coloridos de folhas.
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